domingo, 3 de fevereiro de 2013
Localismo e estado de natureza
O lendário deputado norte-americano Tip O’Neill, presidente da Casa dos Representantes – a Câmara de Deputados dos EUA – de 1977 a 1987, certa feita pontificou que “toda politica é local”. Democrata da velha e boa cepa rooseveltiana, hoje, para os padrões da política praticada ao norte do Rio Grande, O’Neill seria considerado um esquerdista ferrenho. Sua frase célebre admite distintas interpretações. Em comentário a uma biografia recente de O’Neill, o ex-governador de Nova Iorque, Mario Cuomo, definiu a frase all politics is local como um motto do velho prócer democrata, falecido em 1994. A frase seria portadora da ideia forte de que o exercício da representação política exige vínculo com os representados e escuta para suas expectativas e apreensões. Em outros termos, o sistema representativo, fundado na necessária distinção entre representantes e representados, só faz sentido se houver vínculos entre ambos, não limitados aos jogos de captura de sufrágio.
Não é, contudo, essa a única maneira possível de entender a sentença de O’Neill. Em registro um tanto cínico, localismo pode significar tão somente precipitação e dissolução da política na pequena guerrilha, na esperteza da pequena área, na adoção de uma subespécie de maquiavelismo de fancaria. Precipitação que acaba por implicar uma continuada ressignificação da política, pela qual a lógica de curto prazo e o apetite infrene apresentam-se como devoradoras de patrimônios políticos e simbólicos duramente construídos. Localismo, nessa chave, não indica apenas escala de intervenção. Tomado em termos geográficos, o localismo é inevitável e não constitui, em si mesmo, como problema. Afinal, há problemas e conflitos que são locais.
Há, contudo, outra dimensão aqui envolvida, que pode ou não coincidir com o localismo geográfico. Trata-se da prática de uma cultura política fundada em um ativismo personalizado, pela qual voluntarismo e genialidade autoatribuída aparecem como o ápice da virtude política. Claro está que a vigência de tal padrão exige a crença na existência de sujeitos extraordinários, com recursos pessoais incomuns de clarividência e senso de oportunidade.
Duas intervenções políticas recentes, ambas sob a forma de visita, do ex-presidente Lula podem ser associadas ao predomínio da pior versão possível do axioma de O’Neill: as visitas ao escritório do ex-ministro Jobim, da qual quase não mais lembramos, e à residência de Paulo Maluf. Em ambas, o caráter de intervenção personalizada e caprichosa, ao contrário de esgotar seus efeitos locais, produz consequências de ordem mais geral.
Na visita ao ex-ministro Jobim, e na semana seguinte à introdução do tema da verdade, em chave maior, no debate público brasileiro – pela implantação da Comissão da Verdade -, o mesmo tema escorre pelo ralo, com a diversidade de versões a respeito do que ali se disse e das motivações dos dois interlocutores envolvidos (o ex-presidente e o ministro Gilmar Mendes). Diante da indeterminação da verdade, recomenda-se a incredulidade e a despresunção generalizada de inocência. Desconfio, contudo, que o ministro Gilmar não tenha se sentido infeliz com os efeitos públicos do evento.
Na visita ao deputado Paulo Maluf, independentemente do resultado líquido do encontro, sua marca, digamos, doutrinária é da lavra do ex-prócer arenista: foi sua doutrina – um tanto surrada, é claro – que parece ter dado sentido doutrinário à coisa, fixada no límpido enunciado: “Não existe mais direita e esquerda”. Temo que o efeito da sentença sobre as mentes dos observadores comuns – ressalvo aqui os áulicos e os técnicos – seja semelhante ao da apresentação a estudantes de geometria do conceito de triângulo equilátero. Dir-se á, tanto diante da sentença malufista, quanto do conceito geométrico, a mesma coisa: “isto é evidente”; “assim como um triângulo equilátero possui três lados iguais, não há diferença alguma entre direita e esquerda”. Em outros termos, a frase malufista, tal como a demonstração do triângulo, traz consigo, com toda força, seu próprio efeito de verdade.
O que é grave em tudo isso é que não há passagem possível da geometria para a política; na geometria demonstra-se, na política usam-se argumentos. Quando um argumento político ganha foros de evidência geométrica, para além da inautenticidade aí implicada, é de vitória sobre formulações rivais que se trata. Em termos mais diretos, a teoria malufista passa por verdadeira, dada a supressão de alguma possível teoria rival.
A natureza dessa supressão merece atenção. Suspeito de que se trate de um esforço consistente e cumulativo de auto-supressão de possíveis versões alternativas ao cinismo da indistinção. Por auto-supressão entendo a adoção de um padrão político típico de um estado de natureza ou, se quisermos, de um grau-zero da política, no qual todos se igualam no pior e de modo necessário. A rendição a tal realismo é devoradora, no campo da cultura política, de expectativas e de patrimônios de difícil construção e consolidação, mas de facílima dissipação. Disso sabe bem Paulo Maluf, com razões de sobra para estar feliz.
Renato Lessa
(Publicado em 26 de junho de 2012, no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo)
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