domingo, 3 de fevereiro de 2013
Desventuras do país legal
Em meio à descoberta generalizada da existência da curiosa ciência da dosimetria, os brasileiros foram informados do mais recente contributo do Poder Judiciário para o insano problema da superlotação carcerária. Um conhecido empresário goiano, de alcunha Cachoeira, apesar de condenado em ação penal referente a um pormenor heterodoxo vinculado a seu imparável empreendedorismo, foi agraciado com regime de prisão aberta, em função da tal dosimetria. Certamente contribuíram para a moderação penal a reputação ilibada e a baixa periculosidade do personagem. Em função da superlotação carcerária, a pena, que o obrigaria a passar as noites em estabelecimento prisional, foi transformada em prisão domiciliar.
Peço que não me tomem como um, digamos, “barbosista” nestes assuntos, mas, dada a qualidade domiciliar do apenado, o termo “prisão domiciliar” soa como escárnio. É possível que o personagem retorne à hospedagem pública compulsória, por efeito de algum recurso ou de outra ação penal, já que, ao que parece, seu empreendedorismo é tentacular. Mas não deixa de ser notável a perspectiva do pleno regresso ao conforto do lar, como desfecho possível de longa carreira de serviços prestados à atividade de ganhar dinheiro, sem apego a formalidades.
Um dos aspectos mais notáveis do ambiente no qual a notícia foi divulgada foi o do relativo apagamento da memória coletiva das aventuras e desventuras do personagem. O termo “Cachoeira”, hoje secundário nas coberturas jornalísticas, refere-se prioritariamente às escaramuças em torno da Comissão Parlamentar de Inquérito, que o ostenta como forma de designação. O enredo político-empresarial-penal condensado biograficamente no personagem saiu de cena; já não está nas primeiras páginas e, por vezes, desapareceu na cobertura diária.
A quase invisibilidade dá mesmo o que pensar. Antes de tudo, efeito da concorrência desleal do drama da ação penal 470. O julgamento do “mensalão” exerceu sobre nossa capacidade de observação do país um efeito de ofuscação, pelo qual a fisionomia de outros aspectos, também dramáticos, ficou encoberta pelo excesso de luz. Ao que parece, o país deve ser monotemático e sequencial na reflexão sobre suas agruras: um drama de cada vez, até que o subsequente o soterre e ocupe o frenesi da cobertura jornalística. Há, pois, um inegável efeito de camuflagem na coisa, o que não significa supor que a ela – a coisa – seja urdida por alguma inteligência maligna e onipotente.
A invisibilidade do evento matricial decorre ainda do que se passa no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito. Ali trata-se menos de inquérito do que de um experimento aberto de combate político, no qual retaliações e proteções abundam na inacreditável conclusão do relator. A Comissão, ademais, reforça a tradição de que a arena de conflito entre governo e oposição não é má hospedeira da chicana de especialistas em Direito Penal.
Muito teríamos a ganhar, em termos analíticos, se buscássemos associar em uma mesma interpretação os eventos da ação penal 470 ao procedimento penal imposto ao empresário goiano. Juntos compõem uma fábula maior, delineada pelo tema da ilimitação.
Dois macro processos marcam a fisionomia do Brasil contemporâneo: (i) uma expansão acelerada do mundo público, aqui compreendido como universo que inclui não apenas a complexidade e crescimento do Estado, mas também aquilo que os politólogos denominam como “mercado político”, um termo, na verdade excelente; (ii) uma expansão igualmente acelerada das oportunidades econômicas, aqui entendidas como universo de ações voltadas para a maximização crescente da acumulação de patrimônio. É inegável que tais processos, mais do que concomitantes, são convergentes e complementares. Nunca foi tão verdadeiro o juízo de que a ativação econômica afeta a estrutura das oportunidades políticas.
Pelo primeiro processo, à complexidade e crescimento do Estado, soma-se a expansão da atividade política, favorecida após 1985 pelo colapso da fancaria de 1964, visível da afirmação de um amplo multipartidarismo, da consolidação de um eleitorado gigantesco e do princípio da bienalidade eleitoral. Olhos cândidos verão nesse processo uma comovente consolidação dos princípios da representação política. Infelizmente não se pode descartar o travo amargo da suspeita de que a expansão da política abriga de modo parasitário a expansão de negócios de captura, de intermediação e de aberta predação.
Pelo segundo processo, a atividade de “ganhar dinheiro” ganha foros de princípios de primeira filosofia, ou de “variável independente”, como sustentam poetas dedicados ao estudo da política. Tal expansão, a partir de certa escala, implica o aproveitamento de oportunidades de acumulação abertas por decisões governamentais, tanto de alienação do patrimônio público como via programas de “aceleração do crescimento”.
O capitalismo político brasileiro resulta da associação desses dois princípios. Ambos fazem da ilimitação da acumulação – política e/ou patrimonial – um verdadeiro ideal regulatório. Em termos mais diretos, maximização de poder e maximização de dinheiro – associadas ou independentes – mantêm no Brasil relações incertas com o âmbito da legalidade.
A ação penal 470 – para além dos dramas pessoais que ela envolve – lida com os efeitos da ilimitação no âmbito da política. A ação penal que condenou o empresário de Goiás lida com os efeitos da ilimitação no domínio da atividade econômica. Em ambos os casos, trata-se de considerar a seguinte disjuntiva: princípios de legalidade devem se sobrepor aos apetites políticos e econômicos, ou a vitalidade e a espontaneidade dos empreendedores – políticos e econômicos – deve criar sua própria esfera jurídica e moral.
Renato Lessa
(Publicado em 27 de novembro de 2012, no suplemento Aliás do jornal O Estado de São Paulo)
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