sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A língua do Terceiro Reich

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, em setembro de 2009)

Victor Klemperer foi, até meados dos anos trinta, um pacato professor titular de literatura românica da Universidade Técnica de Dresden, na Alemanha. Desde 1920 dedicava-se à pesquisa sobre filosofia e literatura francesas do século XVIII. Sua vida – e a de tantos outros – sofreu brutal inflexão em janeiro de 1933, com a vitória eleitoral dos nazistas. Klemperer definia-se a si mesmo como um “cético prazeroso” e como um humanista. Além disso, pensava-se como um alemão, enraizado em seu país; um veterano da Grande Guerra (1914-1918), portador da Cruz de Combate e protestante convertido – embora filho de um rabino. A viragem de 1933 representou a destruição de seu mito pessoal a respeito de sua identidade alemã.

Pelos critérios racialistas adotados pelos nazistas, Klemperer não era alemão. Sua ascendência – 100% judaica – não indicava outra coisa, a despeito de sua conversão ao protestantismo: tratava-se de um judeu. A Cruz de Combate que recebeu na Grande Guerra e um casamento com uma alemã “ariana” – Eva Klemperer, née Schlemmer – ajudaram a evitar um destino pior. Klemperer sobreviveu ao Terceiro Reich, tendo permanecido na Alemanha o tempo todo em que durou o regime – 1933-1945. Foi salvo pelas bombas inglesas, que destruíram Dresden em fevereiro de 1945. Na véspera de uma dos mais terríveis bombardeiros aéreos da II Guerra, Klemperer havia sido “selecionado” para o campo de extermínio. O caos que resultou das bombas sobre Dresden livrou-o desse destino, comum a cerca de 300.000 judeus alemães.

O nazismo fez com que Klemperer se descobrisse como judeu. O regime retirou todos os atributos que ele acreditava possuir. Foi impedido de dar aulas, de retirar livros na Biblioteca Pública, expulso da Universidade, foi obrigado a vender a sua casa para um “ariano” e confinado a uma habitação coletiva para judeus. Durante os doze anos em que durou o regime hitlerista, Klemperer escreveu um magnífico diário – hoje publicado em várias línguas, inestimável para que tenhamos uma idéia a respeito do que significou viver sob o III Reich.

Klemperer teve oportunidade de deixar a Alemanha, atitude tomada por diversos intelectuais. Esteve mesmo a ponto de assumir uma cátedra na Turquia, que acabou por ser ocupada por seu amigo Eric Auerbach. Ao contrário, Klemperer permanece no país, constrói uma casa, aprende a dirigir, aos quase 60 anos de idade, e compra um carro. Apesar do sofrimento, permanece, sob condições cada vez mais ultrajantes.

Como explicar tal apego? Um contraste pode nos ajudar. O artista plástico alemão Kurt Schwitters - um dos criadores do dadaísmo - sai da Alemanha em 1933 e decide abandonar a língua alemã. Em seu exílio inglês, Schwitters não mais a utilizará, pois a crê contaminada pela “nova ordem”. Klemperer representa o negativo da atitude de Schwitters. Antes que Ludwig Wittgenstein o fizesse, Klemperer sugere que sendo uma forma de vida, o III Reich é um contexto linguístico e semântico. Talvez seja um exagero dizer que fica na Alemanha para estudar a linguagem do III Reich, as marcas impostas à língua pelo nazismo (com efeito, se a filosofia “fala” grego, o nazismo “fala” alemão). Mas se esse não foi o motivo da permanência, acabou por ser o seu resultado, magnificamente apresentado na obra-prima LTI: Língua Tertii Imperii (A Língua do Terceiro Reich), de 1947. Entre diversos achados incomuns do livro, dois devem ser ressaltados: (i) a linguagem dos nazistas foi fundamental para fixar a sua forma cultural e (ii) a derrota do nazismo exige o combate aos hábitos mentais nazistas e, mais do que isso, ao que lhe deu fundamento expressivo, a sua linguagem.

É uma excelente notícia saber que dispomos de uma ótima edição brasileira da obra prima de Klemperer, recém-publicada pela Editora Contraponto, neste mês de setembro. Trata-se de um texto obrigatório para os que se ocupam dos temas do nazismo, do antissemitismo, da linguagem e, sobretudo, da dor humana.