quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Fragmentos da vida bolsonara: o que fazer com a bandeira bolsonarista?

 Fragmentos da vida bolsonara: O que fazer com a bandeira bolsonarista?

Renato Lessa


A extrema direita norte-americana possui uma bandeira para chamar de sua: a dos Confederados, os estados perdedores na Guerra da Secessão. Uma derrota que não impediu a proliferação de sua imagem maior, como cobertura simbólica para todo e qualquer reacionarismo futuro, naquelas plagas.

A extrema direita brasileira não possui bandeira própria. Adotou estratégia distinta: fez da bandeira de todos os brasileiros algo que a distingue como identidade política; fez da bandeira nacional a versão brasileira da bandeira dos confederados. Levou consigo o que, há tempos, chamávamos de “camisa da seleção brasileira”, hoje mero andrajo da impoluta CBF.

Os norte-americanos, de todos os quadrantes políticos, têm sua bandeira comum, a Stars and Stripes, encontrada nas varandas e jardins de casas republicanas, democratas e outras tantas. Para as contendas políticas, preferem a zoologia e servem-se de burros e elefantes. Bem melhor assim.

Entre nós, com a captura da bandeira nacional pela extrema direita, dissipa-se o pendão comum, e com ele a imagem do belo quadro de Pedro Bruno, “A Pátria”, de 1919, hoje no Palácio do Catete.

 


 

Há quem julgue ser de boa hora: tempo de desfazer a tenebrosa alucinação de ser um povo regulado pelos valores da disciplina (ordem) e da eficiência (progresso). Afinal, em que tugúrio ou calabouço esconderam a liberdade?  

Temos, na verdade, uma excelente alternativa que cala fundo em nossas melhores tradições. Por que não adotar a bandeira dos Inconfidentes? Por que não nacionalizar o pavilhão dos mineiros? O triângulo vermelho sobre a superfície branca evoca, além do mais, a linguagem concretista e de algumas de suas variações neo-concretistas, dois dos momentos mais férteis da arte brasileira do século que está a ser enterrado diante dos nossos olhos.  

Para não falar do lema: liberdade ainda que tarde; sempre tardia, mas sempre propiciadora. A camisa “amarelinha” passaria, então, a valer pelo que tem valido: uniforme cívico dos seguidores do Chefe e uma nova fatiota far-se-ia necessária, para o desespero dos torcedores do Grêmio, pois teria que seguir as cores da nova bandeira.

Admito que pensei, como alternativa, na bela bandeira dos paraibanos, igualmente moderna na forma, elegante nas cores e acompanhada da disposição insubmissa do termo “NEGO”. Nascido em 1954, sob o signo do bicampeonato rubro-negro carioca (1953-1954) - que viria a ser promovido no ano seguinte a tricampeonato -, temo que a coincidência das cores – Flamengo e Paraíba – torne minha defesa do pendão da esperança paraibano um tanto suspeita. Confesso que eu mesmo suspeitaria de mim, para dizer o mínimo. Prefiro, pois, a imparcialidade. Coisa que, no meu caso e em qualquer situação, sempre pendeu para os Inconfidentes.

 

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Sobre as ofensas de uma classe abastada

Renato Lessa

(Publicado no jornal O Globo, em 12/7/2020)

Com economia de adjetivos de fazer inveja a Graciliano Ramos, Jane Loureiro, da Vigilância Sanitária carioca, assim respondeu à indagação sobre o teor dos insultos recebidos de gente rompida com o restante da humanidade: “A maneira com a qual se ofende uma mulher”. Com dignidade sociológica, acrescentou: “Ofensas de uma classe abastada, que a gente acha que tem respeito e educação”. A ocasião: a reação iracunda de frequentadores de um bar, na Barra da Tijuca – núcleo impávido do bolsonarismo de raiz -, à ação da Vigilância, no zêlo das regras mínimas de proteção diante da pandemia. Gente que bem sabe como “se ofende uma mulher”.

Na mesma noite, Flavio Graça, superintendente da mesma Vigilância e no mesmo bairro, viu-se diante de dois exemplares do horror pátrio e pétreo a qualquer fumaça de igualdade: um casal indignado com tratamento dispensado, que envolveu o emprego da palavra “cidadão”. O apego atávico a marcas de distinção faz do termo uma imposição de rebaixamento. Cada um, afinal, deve ser chamado pelo que o distingue: daí o aceitável uso do termo “elemento” para os tidos por inferiores. O casal colérico exibiu sua distinção, mas no dia seguinte perdeu os empregos. Ao que parece, há lapsos de vigília no sono dos deuses.

 A frase de Jane Loureiro dá o que pensar. Em um de seus mais importantes poemas – A Flor e a Náusea, de 1945 – Carlos Drummond de Andrade inscreveu o seguinte verso: “Sob a pele das palavras há cifras e códigos”. Sob a epiderme da frase de Jane não há somente cifras e códigos, mas a exibição do abismo civilizatório no qual nos precipitamos sob o consulado inominável da extrema-direita.

Por certo, a vociferação de impropérios misóginos está inscrita na geologia dos nossos hábitos nacionais. Da mesma forma, lá estão a pequena e medíocre arrogância, a alucinação de superioridade e o direito autoconcedido de tomar satisfação dos discrepantes e inferiores. O que agora se acrescenta, é que todos possuem um Chefe e um exemplo, algo que lhes dá unidade e direção. Tornam-se, assim, operadores da obra de desconstrução dos filamentos civilizatórios mínimos que, mal ou bem, vínhamos acumulando.

 Fascismo? Necropolítica? Autoritarismo? Outro nome? Qual? Dar um nome é supor que há uma forma. E o bolsonarismo não tem forma alguma; não faz sistema; é pura obra de destruição; sequer merece um nome para chamar de seu. É constituído por práticas díspares, potências de degradação dos ambientes nos quais são engendradas. Obra que exige tanto iniciativas pelo alto quanto ações e comportamentos na base: negar água potável aos indígenas e humilhar fiscais sanitários; ofender uma mulher.

Cada um faz a sua parte: o Chefe e seus alegres acólitos, protagonistas de uma liberdade, enfim conquistada, de causar danos aos demais. E daí?