quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Quais as vantagens da racialização?

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, vol. 242, n. 255, dezembro de 2009)
Uma das questões mais importantes que, durante este ano, estiveram sob inspeção e deliberação no Congresso Nacional diz respeito ao lugar do tema ‘raça’ no ordenamento legal do país. De forma não surpreendente, diferentes visões ensarilharam seus argumentos, em um confronto no qual, para além de estatutos e diplomas legais, é a própria narrativa a respeito de que país somos, e do que o constitui, que está em jogo. Dada a natureza da questão, muitos ângulos podem ser adotados para o enquadramento do debate e para a tomada de posições.

Um ângulo extremamente útil pode ser encontrado em pequeno e engenhoso ensaio intitulado ‘Subsídios para discussão no Senado brasileiro sobre a adoção de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras’, elaborado por Celia Kertenetzky e Marina Aguas, pesquisadoras do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (Cede), da Universidade Federal Fluminense(www.proac.uff.br). As autoras analisam os impactos possíveis da adoção da cota racial, somada à cota social, no acesso à universidade pública.

Graças à emenda feita pelo deputado Paulo Renato de Souza (PSDB/SP), o projeto de lei 73, de 1999 – que continua em tramitação no Congresso – estabelece que 50% das vagas das universidades públicas serão destinadas a estudantes egressos de escolas de ensino médio da rede pública. Essa parcela é dividida em duas subcotas: uma social (estudantes de famílias com renda igual ou inferior a 1,55 salário mínimo por pessoa) e outra racial (que inclui pretos, pardos e indígenas, em suas proporções específicas em cada estado). Com base nesses percentuais e em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2007, Kertenetzky e Aguas fizeram um exercício sobre a aplicação desses critérios e produziram três conjuntos de evidências no mínimo interessantes.

1. Estudantes elegíveis às cotas sociais constituem nada menos que 75% do total de concluintes do ensino médio no país (público ou privado). Nas duas pontas, Piauí (92%) e Santa Catarina (58%). Se adotarmos aquele marcador salarial como linha de pobreza, é nítida a maioria esmagadora de pobres no contingente considerado. Como notam as autoras do estudo, dada a extensão da pobreza, seria alta a probabilidade de que um simples sorteio, seguido de ordenamento por nota, atingisse os estudantes mais pobres. Nos casos de Piauí e Alagoas, por exemplo, essa probabilidade seria mais do que alta.

2. A maioria do contingente acima indicado é composta por negros e pardos, que representam 56,1%, contra 43,2% de brancos. Isso implica que, se o foco for a renda e, portanto, os estudantes pobres, os negros serão os mais beneficiados.

3. A esmagadora maioria dos estudantes pobres estuda na rede pública de ensino (92%). Assim, se o foco for a rede pública, o maior benefício recairá sobre os estudantes pobres. De modo mais preciso, 95% dos estudantes pobres negros e respectivamente 94% e 86,6% de seus equivalentes pardos e brancos estão na rede pública. Dada a sobrerrepresentação dos negros e pardos na pobreza, a maior parte dos estudantes pobres da rede pública é negra e parda. Logo, se o foco for a rede pública, “os estudantes negros, que são a maior parte dos estudantes pobres, serão os principalmente atingidos”.

A conclusão principal do ensaio é clara: “Se o objetivo é atingir a população negra, a cota racial parece ociosa.” Ambos os focos, tanto o dirigido aos estudantes pobres quanto o que tem por base as escolas públicas, atingiriam preferencialmente estudantes negros. Com a vantagem de não introduzirem “iniquidades horizontais”, ou seja, a exclusão de não-negros pobres e/ou estudantes da rede pública.

É mesmo o caso de perguntar: quais as vantagens da racialização?

Do racismo ao racialismo

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, vol. 52, n. 253, outubro de 2009)

Países são mais do que agregados numéricos e demográficos. Se tomarmos todos os indicadores sociais, políticos e econômicos – e os demais existentes - de um determinado país e se os acoplarmos um tanto imaginariamente, não teríamos a fisionomia de uma sociedade real, mas tão somente uma barafunda de números. Faltariam as expectativas, as imagens, as crenças, os valores, para dizer o mínimo. Dimensões que não podem ser reveladas em indicadores precisos, mas que, talvez por isso mesmo, constituem o cerne da dinâmica social. Quer isto dizer que países são experimentos reflexivos, mais do que sedimentações materiais. E por assim o serem, parte da atividade reflexiva que encerram diz respeito à busca incessante de respostas a respeito de que identidade possuem e de que futuro devem ter.
O Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pela Câmara de Deputados, mais do que um diploma legal, contém uma interpretação do que é e deve ser o Brasil. Pelos seus termos, os brasileiros passam a, em termos legais, dividirem-se em grupos “raciais” distintos. A um conjunto de afro-descendentes corresponde outro de euro-descendentes, o que é curioso em um país no qual a quase totalidade dos pertencentes a um desses grupos pertence também ao outro.
O reconhecimento de legal de “raças” não é, contudo, privilégio brasileiro. Antes da Câmara ter aprovado o Estatuto – que deverá ainda ser apreciado pelo Senado -, a Alemanha dos anos trinta, sob o nazismo, fizera coisa parecida, por meio da distinção legal entre arianos e não-arianos. Os legados do apartheid sul-africano e o da exclusão eleitoral dos negros no sul dos Estados Unidos, até os anos sessenta, devem ser incluídos na série pouco edificante.
Pelo Estatuto passamos a ter uma história cujo ensino deve ser contado na perspectiva de uma luta de raças. Tratar-se-ia de uma história na qual “brancos” oprimem “negros”, por mais de 300 anos, a definir um quadro que exigiria reparação eterna. Com efeito, a reconstrução da história pretérita produz efeitos no presente e no futuro: o Estatuto estabelece uma série de vantagens fiscais para empresas que empreguem no mínimo 20% de trabalhadores de cor negra – ou não-branca. É de se imaginar os efeitos de tal medida, que acabará por instituir uma divisão racial entre os trabalhadores, quebrando formas tradicionais de solidariedade. No mínimo haverá que julgue um avanço podermos contar, no futuro, com sindicatos raciais.
Pesquisas de natureza sociológica – tais como as desenvolvidas por Nelson do Valle e Silva e Carlos Hasenbalg, a partir dos anos 1970 - indicam que a cor da pele – ou a “raça” – é um marcador social significativo. Os indicadores negativos de renda, e educação quando associados à cor da pele – “negros” ou “pardos” – configuram os estratos sociais mais vulneráveis no país. Por essa via, a sociologia empírica parece ter refutado a idéia de que temos no país um quadro de harmonia “racial”, tal como teria sido sugerido por Gilberto Freyre. Justiça seja feita a Gilberto Freyre. Sua obra não visava refutar a presença da discriminação racial no Brasil, mas simplesmente mostrar a estupidez básica de um racismo renitente diante de um experimento social e histórico fundado em uma combinação, um tanto sincrética, de populações de enorme diversidade e cores de pele distintas.
Há, por certo, um enorme passivo social no país, a submeter os cidadãos a condições injustificáveis. As cores, nesse conjunto, são variadas. Ainda que atitudes racistas sejam contumazes, cabe criminalizá-las e combatê-las no plano da educação e dos valores. O Estatuto da Igualdade, movido pelo impulso impecável de combater o racismo, poderá ter efeito contrário, qual seja, o de instituir, à moda americana, um padrão social baseado em “grupos raciais”, com direito a reconhecimento jurídico diferenciado. Se a coisa passar no Senado, talvez seja o caso de falar em des-Proclamação da República.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Do revisionismo negacionista

Renato Lessa
(Publicado originalmente em mina coluna Sobre Humanos, na Revista Ciência Hoje, vol 45, n. 265, novembro de 2009)
Ossos do ofício. O Brasil, por manter relações diplomáticas com a República Islâmica do Irã, receberá no final de novembro a visita do mandatário desse país, o presidente Mahmoud Ahmadinejad, célebre, entre outras façanhas, pela militante nega-ção da existência do Holocausto. A atitude do dignitário iraniano tem recebido condenação generaliza-da e explícita. A moderação das autoridades brasileiras na matéria não deixa de ser preocupante, para um país que pretende ocupar posição de protagonista no cenário político internacional.
As opiniões do presidente do Irã não configuram uma aberração. Elas estão associadas a uma corren-te autodenominada "revisionista", presente em círculos antissemitas europeus desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Tal corrente nega o episódio que vitimou cerca de 6 milhões de judeus, entre outros – como ciganos, homossexuais e dissidentes políticos – julgados indignos de viver pelos nazistas.
Não há nada de errado, em princípio, com a ideia de revisionismo. O termo surgiu no século 19 associado a causa mais do que defensável: a revisão da condenação de Alfred Dreyfuss (1859-1935), capitão francês vítima de acusações injustas e infamantes, eivadas de antissemitismo. O conteúdo da ideia de ‘revisão’, porém, dependerá daquilo que se pretende rever e do grau de refutação da existência de eventos históricos esmagadoramente evidentes.
Após a Segunda Guerra, emergiu de forma progressiva um ‘revisionismo negacionista’ dotado de claras tinturas antissemitas e, a partir de 1948, antissionistas. Em seu clássico livro Les assassins de la mémoire, o historiador francês Jean-Pierre Vernant (1914-2007) resumiu os ‘princípios’ centrais sustentados pelos revisionistas:
1. Não houve o genocídio praticado pelos nazistas, e a câmara de gás – seu principal símbolo – jamais teria existido.
2. A "solução final" – termo presente no vocabulário oficial do regime nazista – não teria significado senão a expulsão dos judeus para a Europa Oriental.
3. O número de judeus vitimados teria sido muito menor – 1 milhão e não 6 milhões – e resultaria de bombardeios dos aliados e de doenças.
4. A Alemanha hitlerista não seria responsável pela guerra: os revisionistas apresentam os judeus como corresponsáveis pela eclosão do conflito.
5. A principal ameaça à humanidade, na década de 1930, não era representada pela Alemanha, mas pela União Soviética. Por Stalin, não por Hitler.
6. O genocídio judaico teria sido uma invenção da propaganda aliada, fortemente influenciada pelos judeus que, "sob a influência do Talmud, têm propensão à imaginação estatística", segundo antissemitas militantes e revisionistas como o norte--americano Arthur Butz e o francês Robert Fauris-son, ambos ‘historiadores’ execrados por historiadores respeitáveis.
As ‘teses’ do revisionismo negacionista são indefensáveis. Em vários países são tratadas no campo do direito penal, como criminosas. A fracassada tentativa de processar a historiadora norte-america-na Deborah Lipstadt, feita pelo historiador revisionista inglês David Irving em um tribunal inglês, definiu de forma clara o lugar dos revisionistas negacionistas no cenário atual. Lipstadt demonstrou o caráter neonazista das teses de Irving e seu antissemitismo doentio. Nos termos do filósofo israelense Amós Finkelstein, os revisionistas praticam uma "contra-história", uma "narrativa inautêntica e uma ação perniciosa", voltadas para a "distorção da autoimagem do adversário, de sua identidade, por meio da desconstrução de sua memória".
Ahmadinejad é herdeiro dessa tradição revisionista. Sua pregação encontra abrigo em um antissemitismo difuso, assentado em abissal ignorância histórica. Mais do que um ódio a Israel e aos judeus, trata-se da sobrevivência, em pleno século 21, de algumas das mais fundamentais motivações do nazismo.
Ahmadinejad é célebre por negar o Holocausto. A moderação das autoridades brasileiras na matéria não deixa de ser preocupante

Da mediação não-imparcial

Renato Lessa
(Publicado no suplemento "Aliás", do Estado de São Paulo, em 30 de novembro de 2009 )
Dias após discreta e contida recepção oficial no Brasil oferecida ao Presidente de Israel, Shimon Peres, com pompa e certo espalhafato aportou entre nós o Presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad. Relações entre Estados por certo, contêm uma dimensão, digamos, extra cíclica, mais larga no tempo do que a duração dos espasmos políticos imediatos. Afinal, não são regimes que estão a interagir, ou, menos ainda, governos e personalidades, mas entidades dotadas de maior permanência e durabilidade. No entanto, Estados não são entes de razão. Materializam-se, de modo necessário, em regimes e governos, e esses se fazem presentes por seus supremos mandatários. Na impossibilidade da presença de Deus - em versão local - mandou-nos o Irã o Sr. Ahmadinejad. De nossa parte, quiseram inequivocamente os eleitores brasileiros, sem qualquer supervisão divina, que na ocasião daquela visita estivesse o Presidente Lula a representar-nos.
É exatamente nesse abismo entre a impessoalidade e abstração contidas na idéia de Estado e a concretude e personalização dos regimes, dos governos e da presença de seus mandatários que reside toda a questão. Não bastam cândidos formalistas a decretar que “por razões de Estado” devem mandatários de países com relações diplomáticas em curso encontrar-se e que tal justificativa, tal como fazia o saudoso Gustavo Kuerten, “mata o ponto”. Essa é na verdade uma forma curiosa de pensar. Tomam-se normas escritas e formais como explicação em última instância e justificativa para gestos de natureza política. O hábito argumentativo sabe bem a cinismo. Melhor fez Carlos Drummond de Andrade, para quem “os lírios não nascem da lei; meu nome é tumulto e se escreve na pedra”.
No caso em questão, não se trata tanto de tumulto, mas de abismo. Um abismo inscrito entre a formalidade e a operação política. Para além do imperativo dos bons modos, poder-se-ia acrescentar como razão para a visita de Ahmadinejad - antecipada não apenas pela de Shimon Peres, mas pela de Mahmud Abbas - o desejo do governo brasileiro em lançar o país como interlocutor ativo em um dos mais intratáveis conflitos internacionais contemporâneos. Com efeito, não é trivial a presença em curto espaço de tempo, em um mesmo país, dos três personagens indicados. A questão, no entanto, consiste em saber se a presença simultânea é indicador suficiente do preenchimento do papel pretendido. Tudo dependerá, entre outros fatores, do que foi dito aos dignitários que por cá passaram.
Recordemos do patético papel cumprido por José Manuel Durão Barroso, então primeiro ministro de Portugal, ao receber na base das Lajes, na Ilha Terceira (Açores), em 2003, Bush, Blair e Aznar, no que desaguou na intervenção “aliada“ no Iraque. Houve mesmo quem dissesse na altura que, pelas mãos de Durão Barroso, Portugal teria sido o primeiro país a entrar em uma guerra como anfitrião. Descontada a maldade da oposição de esquerda portuguesa, ninguém com juízo mental médio julgou que a cimeira dos Açores representou algo de significativo para a projeção internacional de Portugal. É certo que a quase simultaneidade das visitas ao Brasil, dos mandatários mencionados, tem sabor distinto. Não se trata de reuni-los para simbolicamente lançar um plano comum, mas de afirmar uma vontade de mediação.
Ressalvado o que pode ter sido dito em segredo, e para cada um deles em particular, o que veio a público não é auspicioso. Sem dúvida, o presidente Lula é insuperável na arte de dizer a desafetos - um de cada vez - de que todos possuem lugar em seu vasto coração. São os custos afetivos do presidencialismo de unanimidade. Cada um dos interlocutores do presidente deve ter a convicção de que critérios generosos de justiça fundiária imperam no coração do presidente. Serão tais artes suficientes para a projeção do país como mediador de crises internacionais graves e complexas? Tomara que sim. Não estou aqui a torcer contra, mas o velho hábito da dúvida e da reserva cética sempre faz da suas.
Os hábitos do interlocutor afetuoso não podem, em particular, evitar a sensação de que não somos exatamente eqüidistantes no conflito que pretendemos mediar. A Mahmoud Abbas, por exemplo, foi dito que o Brasil condena a expansão das colônias israelenses para além do território do Estado de Israel e em terras sob jurisdição ainda precária da Autoridade Palestina. Penso não existir, se calhar, causa mais decente e defensável do que essa. No entanto, seria música para os ouvidos de Abbas ter escutado algo a respeito do regime que o Hamas impôs na Faixa de Gaza, com a eliminação física de dezenas de milhares de militantes da Fatah. O deleite musical teria chegado ao máximo êxtase, se nosso mandatário tivesse condenado o apoio e o financiamento iranianos ao Hamas. Isso não foi feito. Será que estamos à espera dos mandatários da Faixa da Faixa de Gaza, para apurar nossa vocação pacificadora?
Do que foi dito, em público, a Mahmoud Ahmadinejad, é inevitável a sensação de falta. A tímida afirmação da vocação pacifista brasileira e a defesa do “direito legítimo” ao desenvolvimento de tecnologia nuclear com fins pacíficos fenecem diante da decisão da Agência Nuclear Internacional de considerar o programa iraniano como incompatível com o Direito Internacional. E como ficamos diante disso? Consideramos a Agência um braço do imperialismo e confiamos no semblante impassível de Ahmadinejad ao escutar as palavras do presidente Lula?E quanto à negação criminosa e obstinada da existência do Holocausto? Nada a respeito foi ouvido, da parte brasileira. É como se o tema não fizesse parte da agenda de cooperação entre os dois estados. O Brasil no momento mantém encarcerado um ex-militante político italiano, acusado em seu país de ter cometido delitos de sangue. Há imensas dúvidas quanto à seriedade do processo ao qual foi submetido naquele país. Ao mesmo tempo, recebemos um negacionista como Ahmadinejad, sem que suas patologias fétidas tivessem sequer um reparo, mesmo educado e gentil. Na verdade, quem falou do Holocausto durante a visita foi o próprio presidente iraniano. Em entrevista ao fim da visita fez a gracinha: disse ter ouvido falar que entre os 60 milhões de mortos da II Guerra, havia alguns judeus. O cinismo da afirmação está a revelar que o personagem não veio ao Brasil para fazer concessões.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A língua do Terceiro Reich

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, em setembro de 2009)

Victor Klemperer foi, até meados dos anos trinta, um pacato professor titular de literatura românica da Universidade Técnica de Dresden, na Alemanha. Desde 1920 dedicava-se à pesquisa sobre filosofia e literatura francesas do século XVIII. Sua vida – e a de tantos outros – sofreu brutal inflexão em janeiro de 1933, com a vitória eleitoral dos nazistas. Klemperer definia-se a si mesmo como um “cético prazeroso” e como um humanista. Além disso, pensava-se como um alemão, enraizado em seu país; um veterano da Grande Guerra (1914-1918), portador da Cruz de Combate e protestante convertido – embora filho de um rabino. A viragem de 1933 representou a destruição de seu mito pessoal a respeito de sua identidade alemã.

Pelos critérios racialistas adotados pelos nazistas, Klemperer não era alemão. Sua ascendência – 100% judaica – não indicava outra coisa, a despeito de sua conversão ao protestantismo: tratava-se de um judeu. A Cruz de Combate que recebeu na Grande Guerra e um casamento com uma alemã “ariana” – Eva Klemperer, née Schlemmer – ajudaram a evitar um destino pior. Klemperer sobreviveu ao Terceiro Reich, tendo permanecido na Alemanha o tempo todo em que durou o regime – 1933-1945. Foi salvo pelas bombas inglesas, que destruíram Dresden em fevereiro de 1945. Na véspera de uma dos mais terríveis bombardeiros aéreos da II Guerra, Klemperer havia sido “selecionado” para o campo de extermínio. O caos que resultou das bombas sobre Dresden livrou-o desse destino, comum a cerca de 300.000 judeus alemães.

O nazismo fez com que Klemperer se descobrisse como judeu. O regime retirou todos os atributos que ele acreditava possuir. Foi impedido de dar aulas, de retirar livros na Biblioteca Pública, expulso da Universidade, foi obrigado a vender a sua casa para um “ariano” e confinado a uma habitação coletiva para judeus. Durante os doze anos em que durou o regime hitlerista, Klemperer escreveu um magnífico diário – hoje publicado em várias línguas, inestimável para que tenhamos uma idéia a respeito do que significou viver sob o III Reich.

Klemperer teve oportunidade de deixar a Alemanha, atitude tomada por diversos intelectuais. Esteve mesmo a ponto de assumir uma cátedra na Turquia, que acabou por ser ocupada por seu amigo Eric Auerbach. Ao contrário, Klemperer permanece no país, constrói uma casa, aprende a dirigir, aos quase 60 anos de idade, e compra um carro. Apesar do sofrimento, permanece, sob condições cada vez mais ultrajantes.

Como explicar tal apego? Um contraste pode nos ajudar. O artista plástico alemão Kurt Schwitters - um dos criadores do dadaísmo - sai da Alemanha em 1933 e decide abandonar a língua alemã. Em seu exílio inglês, Schwitters não mais a utilizará, pois a crê contaminada pela “nova ordem”. Klemperer representa o negativo da atitude de Schwitters. Antes que Ludwig Wittgenstein o fizesse, Klemperer sugere que sendo uma forma de vida, o III Reich é um contexto linguístico e semântico. Talvez seja um exagero dizer que fica na Alemanha para estudar a linguagem do III Reich, as marcas impostas à língua pelo nazismo (com efeito, se a filosofia “fala” grego, o nazismo “fala” alemão). Mas se esse não foi o motivo da permanência, acabou por ser o seu resultado, magnificamente apresentado na obra-prima LTI: Língua Tertii Imperii (A Língua do Terceiro Reich), de 1947. Entre diversos achados incomuns do livro, dois devem ser ressaltados: (i) a linguagem dos nazistas foi fundamental para fixar a sua forma cultural e (ii) a derrota do nazismo exige o combate aos hábitos mentais nazistas e, mais do que isso, ao que lhe deu fundamento expressivo, a sua linguagem.

É uma excelente notícia saber que dispomos de uma ótima edição brasileira da obra prima de Klemperer, recém-publicada pela Editora Contraponto, neste mês de setembro. Trata-se de um texto obrigatório para os que se ocupam dos temas do nazismo, do antissemitismo, da linguagem e, sobretudo, da dor humana.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

50 anos do neoconcretismo

Renato Lessa

(Publiquei este pequeno artigo em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, de junho de 2009. Escrevi-o motivado pela visita à excelente exposição sobre o Neoconcretismo, no Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro. A curadoria da exposição coube a Reynaldo Röels, um dos mais finos e eruditos críticos de arte do país. Quando visitei a exposição e quando escrevi o artigo não poderia imaginar que Reynaldo viria a falecer, pouco mais de um mês depois. Que esta postagem seja uma homenagem a seu talento rigorosamente incomum)

Uma excelente mostra no Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, com curadoria de Reynaldo Roels, marcou os cinqüenta anos da 1a Exposição Neoconcreta, inaugurada naquele mesmo espaço, em março de 1959 (o ótimo texto elaborado pelo curador, de introdução à mostra, pode ser encontrado em http://www.mamrio.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=179&Itemid=36). Embora encerrada em 7/6/09, é importante marcar a importância do movimento neoconcreto no contexto da arte contemporânea brasileira. Mais do que parte do material apresentado em 1959, a exposição de 2009 considerou a trajetória do grupo de artistas neoconcretos do Rio de Janeiro até a sua dissolução em 1962. Foram apenas três anos, mas dos mais fecundos e inovadores na história da arte no Brasil.

Além de exibir o Manifesto Neoconcreto, publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil - então uma das principais referências culturais e de vanguarda no país -, a exposição de 2009 reuniu obras de alguns dos mais notáveis artistas plásticos brasileiros, ligados ao movimento: exemplares da série Bicho de Lygia Clark, alguns dos Metaesquemas de Hélio Oiticica, além de obras de Amilcar de Castro, Lygia Pape, Wyllis de Castro, Aluísio Carvão, Franz Weissmann, Hércules Barsotti e Décio Vieira e poemas de Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim e Roberto Pontual.

O Manifesto, um dos principais documentos programáticos da arte brasileira, foi escrito e publicado no início de 1959. Elaborado pelo poeta Ferreira Gullar, o texto contou com as assinaturas de Amílcar de Castro, Claudio Mello e Souza, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis, artistas no núcleo inicial do movimento. Outros se juntaram ao grupo, com destaque para Helio Oiticica, Décio Vieira, Wyllis de Castro e Hércules Barsotti.

Ambos os movimentos – Concreto e Neoconcreto – foram fundamentais para a afirmação de uma arte abstrata no Brasil, que questionou os padrões acadêmicos e modernistas que dominantes no país até os anos 50. O ponto de partida para a abstração foi dado na 1a Bienal de São Paulo, cujo cartaz foi elaborado por um artista plástico concretista – Antonio Maluf (1926-2005) – e apresentava uma sucessão de retângulos – como uma série de molduras inscritas umas nas outras – a convergir para um centro vazio. Nada que sugerisse figuração. Antes o contrário, apenas a abstração de formas geométricas. A Bienal de 1951 premiou, ainda, o artista suíço Max Bill que defendia e praticava uma arte racionalista, vinculada à atmosfera de uma sociedade industrial e em reconstrução no segundo pós-guerra.

O componente racionalista pode ser detectado na defesa de uma arte que buscava comunicação imediata com o espectador, sem a mediação de conteúdos figurativos e literários. A atmosfera cartesiana se fazia evidente pela preferência por uma linguagem que exibia formas claras e distintas: figuras geométricas, isoladas ou em série. Uma arte que falava à razão e à percepção geométrica, deslocando o eixo da fruição estética dos campos da expressão e da interpretação para o do reconhecimento puramente formal.

A ruptura dos neo-concretos cariocas baseou-se em uma crítica no que definiam como o caráter dogmático e rígido da arte concreta. Nos termos precisos do texto de apresentação da exposição de 2009, de autoria do curador Reynaldo Roels: “No manifesto, são criticadas as teses mecanicistas e reducionistas do concretismo ortodoxo, e é defendida ali uma posição em tudo próxima ao humanismo tradicional: a irredutibilidade da experiência estética à mera fisiologia do olhar (psicologia da Gestalt), a atividade do artista como uma prática intuitiva, a rejeição de todo e qualquer receituário normativo para a criação da obra, e a inclusão do espectador como agente ativo na constituição da experiência artística”.

No contexto do Neoconcretismo foi notável a correspondência entre o que propunham seus textos programáticos e o que as obras efetivamente realizavam. Por certo, muitas delas anteciparam a formulação teórica, mas ainda assim é notável a consistência filosófica, estética e artística do experimento neoconcreto. A recusa da rigidez concretista não eliminou a geometrização, mas a pôs sob o domínio da expressão e da imaginação. Este é mesmo um bom termo, invenção: para uma arte emancipada do racionalismo e para um país que, na altura, procurava reinventar-se.

domingo, 23 de agosto de 2009

Testemunho da força de quem resiste

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, de agosto de 2009)
Uma parte importante da história do Rio de Janeiro - e, por extensão, do país – acaba de ser reunida e contada. Trata-se de um belo, triste e corajoso livro, há poucas semanas lançado, sob o título de Auto de Resistência: relatos de familiares de vítimas da violência armada (Editora Sete Letras), organizado com extremo cuidado e engenho por Barbara Musumeci Soares, Tatiana Moura e Carla Afonso. O livro resulta de trabalho singular e necessário, executado pelo Projeto de Apoio a Familiares de Vítimas de Chacinas, sediado no Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, em colaboração com o Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra.

O livro pretende registrar o testemunho da "força de quem resiste" e foi "feito a muitas mãos, por uma equipe mista de familiares e de profissionais da palavra e da imagem", segundo os termos usados em sua apresentação. Põe-se, ainda, "a serviço da preservação da memória de um doloroso aspecto da nossa vida social, como um retrato vivo de uma realidade que não pode mais cair no esquecimento".

E de que "aspecto doloroso" se está a falar? Trata-se da forte e indelével presença da violência armada na cidade do Rio de Janeiro e em suas periferias, que tem encontrado em jovens pobres do sexo masculino suas vítimas - e agressores - preferenciais. Os números do problema envolvem estatísticas dispostas em séries nas quais constam itens tais como " encontro de cadáver", "encontro de ossada", "morte suspeita", "pessoas desaparecidas e homicídios dolosos". Para consulta numerológica, sugiro o sítio do Instituto de Segurança Pública, do governo do Estado do Rio de Janeiro (www.isp.gov.rj). Para as razões, os significados e os efeitos da matança sugiro outros trajetos de investigação. Em particular, o da escuta dos que sobrevivem e não esquecem. E é justamente isto que pode ser encontrado no livro em questão.

Um dos aspectos mais letais e dramáticos do quadro doloroso é o das chacinas e execuções sumárias, quase sempre associadas a ações das polícias no Rio de Janeiro. São muitas as chacinas, assim como os seus vitimados. Para além do abismo e da impessoalidade das estatísticas, há as histórias de vida dos que são executados e a dor, o trauma e a permanência na vida dos que sobrevivem. O lado pungente do livro encontra-se precisamente nesta dobra. Ali temos relatos de quinze mães, duas esposas, uma sogra e uma irmã, que permaneceram com a morte em seus colos. Um contingente de mulheres mais do que corajosas, a militar pela preservação da memória dos que perderam e por sua inscrição ativa na vida, por meio da interpelação cívica e da demanda por justiça.

Cada uma dessas mulheres apresenta, na primeira parte do livro, seus relatos, nos quais, para além dos episódios que suprimiram do mundo seus filhos, maridos, irmãos e genros, fala-se das últimas lembranças dos mesmos ainda em vida, do último dia de convivência, do impacto da perda no cotidiano. Tudo isso com um cuidadoso suporte editorial pelo qual a situação judiciária de cada caso é apresentada.

Mas não falta o outro lado da dobra. A par disto tudo, as fotografias dos que se foram devolvem à vida e à memória os vitimados, para além da numerologia e da terminologia macabra dos cadáveres e ossadas. E o que denotam as fotografias é a presença de uma vitalidade em vias de ser suprimida. São fotografias vivas, totalmente afastadas de imagens frequentes das vítimas de morte violenta que nos exibem seus documentos de identificação.

Mais do que os relatos da perda e das últimas memórias e das fotografias dos vitimados, há ainda, na segunda parte do livro, o registro do que pode ser designado como as dificuldades da escuta. Aqui reside uma dimensão dramática, há muito detectada por Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, quando diante de seus relatos do que se passou nos campos de extermínio percebia reações de incredulidade e de inexpressão. Em um certo sentido, não estamos preparados para ouvir essas histórias, mas é imperativo que o façamos. Narrativas a respeito das dificuldades de escuta e da indiferença, por parte das autoridades, aparecem nesta segunda parte do livro associadas a relatos sobre a militância e sobre o convívio com quem também foi vitimado. Há um sujeito coletivo ali implicado, que não abole as particularidades de cada experiência, pois todas elas são, a um só tempo, compartilháveis e incomensuráveis.

Um livro, enfim, para ler, ver, chorar e pensar. E mais do que isso, para melhor qualificar a interpelação cívica: são democráticos uma sociedade e um regime político nos quais as forças da ordem impõem tamanho sofrimento e brutalização?

domingo, 9 de agosto de 2009

Dos erros veniais e dos nem tanto

Renato Lessa

(Publicado originalmente no Suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, em 9/8/2009)

É mais do que razoável, ao examinarmos uma história de vida, proferir juízos do tipo: “naquele momento determinado, um erro foi cometido”. Profissionais devotados ao estudo do mistério da causalidade podem, por certo, sustentar que as escolhas humanas são passíveis de inscrição em longas séries de interações entre causas e efeitos, de modo que, ao fim e ao cabo, tudo, por mais absurdo que seja, acaba por fazer sentido. Mas, penso que aqui se impõe uma distinção.

Dizer de um evento ou ação humanos que eles possuem antecedentes que podem ser rastreados, é algo que resulta da operação de um raciocínio hipotético e a posteriori, estranho ao domínio da vida como ela é. Um raciocínio, não raro, vinculado a uma crença-mãe que sustenta que tudo faz sentido, que nada na ordem da história é absurdo ou gratuito. Uma espécie de razão suficiente nos imporia a aceitação de que tudo aquilo que aconteceu, aconteceu porque tinha que acontecer e da forma pela qual aconteceu.

Mas, do ponto de vista do sujeito que age e escolhe, em meio à pequena área da vida comum, não lhe é dado simular o que seria uma cadeia de causalidades que lhe imporia o que deve ser feito no momento preciso da ação. Na perspectiva da ação, a voz de Blaise Pascal é mais forte do que a René Descartes. É antes a (i)lógica da aposta do que a da geometria que se apresenta aos humanos. Não há ordem das razões que se imponha ao sujeito como garantia da correção de suas ações no mundo, mas sim os imperativos da crença, das paixões e do que, no momento mesmo da ação, lhe parece ser o mais adequado fazer. O corolário terrível dessa idéia de ação como salto no desconhecido é o fato de que ações podem ser interpeladas, não na perspectiva de um ordenamento histórico necessário, mas do ponto de vista da sua falibilidade e de sua capacidade de gerar conseqüências não-desejadas e, mesmo, desastrosas.

Começo por essa digressão, um tanto metafísica, para sustentar que é legítimo dizer que o “país” – se me for permitido a licença metonímica – cometeu um erro terrível em 1989. É certo que não há erro sem história, o que poderia nos levar a atenuar possíveis culpas, por meio da crença de que “fomos levados ao erro”. Que seja. Mas, de que erro se trata? Falo abertamente da escolha de Fernando Collor de Mello como Presidente da República. Às malvas o bacharelismo jurídico, que absolve o absurdo pela referência à legitimidade do ato, e a crença dos especialistas de que os eleitores sempre sabem o que fazem, em curiosa falácia de composição: seres humanos enquanto indivíduos cometem erros, mas quando se transformam em eleitorados são revestidos da misteriosa prerrogativa da lucidez e da expressão de verdades básicas.

É evidente que não há alternativa melhor do que a de conceder a maiorias eleitorais a prerrogativa de governar e constituir os corpos legislativos. Mas isso não as põe a salvo do absurdo, da frivolidade e da estupidez das escolhas. O eleitorado errou em 1989, tanto quanto acertou em 1994, 1998, 2002 e 2006. Nessas quatro oportunidades, os vitoriosos apresentaram razões razoáveis ao país, como fundamentos de suas pretensões à vitória política. O experimento de 1989 foi de outra ordem. Não é o caso de exumá-lo, mas apenas de lembrar o clima manicomial que assolou na altura a política brasileira, com intensa exibição de personagens deletérios, todos a gravitar em torno daquilo que Candido Mendes, em expressão inspirada, designou como “O Príncipe Negro”.

Fernando Collor de Mello foi afastado da vida pública brasileira, por meio de processo piedoso que o livrou das conseqüências penais de seus atos, até que recentemente aproximou-se da porta dos fundos, ao ocupar uma vaga no Senado. Ocupava, desde então, lugar cativo na vasta galeria do baixo clero até que foi reconduzido ao cenário maior da vida pública brasileira por gesto do Presidente Lula, que valeu como uma anistia. Um gesto, de resto, típico de seu autor, um sujeito político que se representa como síntese do país e como praticante de uma arte política sincrética e espaçosa. Mas, por mais que tal gesto seja passível de análise por parte de uma psicologia política, temo que o tema do erro tenha se imiscuído mais uma vez na história recente. Não um erro com dimensões colossais como o de 1989, mas, ainda assim, um gesto capaz de reintroduzir na dinâmica política do país um profissional da inautenticidade e da intimidação.

As cenas que o personagem protagonizou com o senador Pedro Simon assustaram o país pelo destempero, pelo esgar alucinado e pela agressividade quase homicida. O mais grave terá sido a figura ter referido-se a si mesma como “ex-Presidente da República”, em uma forma de auto-nomeação que já exibe as marcas da readmissão à primeira divisão. O par que compôs, na altura, com Renan Calheiros e a escolta pessoal que ambos ofereceram ao presidente do Senado na saída do plenário, após o discurso que este proferiu em sua defesa, dão o que pensar. É mesmo necessário este padrão político que tem encontrado no Senado expressão tão eloqüente?

Há aqui, penso, uma ordem de razões a ser considerada. A primeira delas diz respeito ao descolamento entre as dinâmicas sociais básicas do país com relação ao que costumeiramente se designa como as instituições representativas. Não se trata apenas de uma disjunção entre o social e o político. Algumas das mais importantes dinâmicas governamentais, na esfera do Executivo, buscam blindagens com relação a formas políticas predatórias. Outra ordem tem a ver com o lamentável estado da base parlamentar do governo. Uma base na qual o PT, menos por seu tamanho e mais por sua heteronomia, ocupa lugar secundário, além de cada vez mais constituída por um mecanismo de “peemedebização” crescente: ocupação física e patrimonial de espaços em troca da não-criação de problemas. Uma democracia representativa sem partidos e sem representação, e com a valorização da chantagem como moeda política, perece estar no promissor horizonte da República.
Há algo de grave no campo da representação política que faz com que episódios dessa natureza tenham tal freqüência. Há sempre quem diga que a sensibilidade a esses fenômenos revela uma inclinação moralista e uma falta de capacidade de perceber o que realmente está em jogo. Talvez tal dificuldade resulte simplesmente do fato de que o tal jogo real talvez se passe, efetivamente, muito longe dos esgares alucinados e da chicana que tem ocupado o proscênio do parlamento.

sábado, 8 de agosto de 2009

A pedagogia republicana do PMBD

Renato Lessa
(Publicado originalmente no Suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, em março de 2009)

À parte o término dos mandatos presidenciais do deputado Chinaglia e do senador Garibaldi, não há o que comemorar, do ponto de vista dos reais democratas - assim, com letra inicial minúscula, para não haver qualquer ambigüidade – com a troca de mandatários nas mesas da Câmara de Deputados e do Senado Federal. Com efeito, poucas vezes as duas casas legislativas da República contaram com direções tão anódinas, temperadas na câmara baixa por indisfarçável arrogância do mandatário em questão e pelo estudado regionalismo nas maneiras do personagem, na câmara alta. Não deixam saudades, pois, e nem sequer a doce memória purgativa da defenestração do deputado Severino. É sempre bom saber, contudo, que ocorrências de tal natureza, ainda que sazonais, ao fim e ao cabo encerram-se. É de se esperar, ainda, que o atual governo italiano, que tem demonstrado energias cognitivas incomuns nas últimas semanas, não interprete a desitalianização implícita no processo acima aludido como gravame do contencioso em curso com o governo brasileiro.
A reemergência do senador Sarney e do deputado Temer, na dupla direção do empreendimento legislativo, põe fim à anodinia anterior e reentroniza no proscênio da República os profissionais do métier. Desloca, na verdade, o eixo da aflição: é, afinal, gente do ramo que toma conta das rédeas, no lugar do experimento de alpinismo político, que por ora se encerra.
É de lamentar, de passagem, que ex-Presidentes da República não tenham assento vitalício no Senado. Se calhar, sem direito a voto; mas, ainda assim, ao alcance das homenagens e dos rituais de aconselhamento. Vaidades patológicas seriam aplacadas e muito ganharíamos, quem sabe, com isso. No caso de José Sarney, seríamos poupados da constrangedora Operação-Amapá e ficaríamos restritos ao habitual paradigma maranhense. De Itamar Franco, nada se pode dizer; de Fernando Henrique Cardoso, desfrutaríamos a militante e iluminada reedição de Martins de Almeida, em chave científica e demonstrativa, da apresentação dos erros do Brasil enquanto país. Trata-se apenas de uma impressão, pois não estaria mesmo disposto a alargar meu círculo de desafetos por esta causa. Ainda assim, penso que faz sentido. É de amargar, ainda, que não se tenha tido idéia melhor do que a da recondução do deputado Temer à presidência da Casa que representa aquilo que Darcy Ribeiro - e os de sua grei - designava como “o povo brasileiro”. Salvo falhanço de memória, não encontro registro do contributo institucional do referido deputado, proveniente de sua passagem anterior pelo cargo. A alternativa proporcionada pelo jovem representante do baixo clero parlamentar poderia, ao menos, reduzir as margens de opacidade vigentes no mundo institucional.
Mas, não é disso que se trata. O principal a considerar é a seguinte questão: qual é o estado de uma república na qual o PMDB, além de ser o maior partido eleitoral, controla a direção das duas casas que compõem o Legislativo?
O PMBD evoca o estado bruto e natural da política brasileira. Representa o fundo duro e material que todos os partidos possuem ou gostariam de possuir. Equivale, ainda, a algo que poderia ser percebido como objeto de uma história natural da política. Aludo, aqui, à inspirada imagem, introduzida pelo genial – e já falecido - escritor alemão Wilfred Sebald, quando falou de uma história natural da destruição, a respeito dos efeitos da guerra aérea, durante a 2a Guerra, sobre as cidades alemães. Sebald, em livro memorável (História Natural da Destruição), evoca a chamada literatura das ruínas – pace Max Nossack, Heinrich Böll e Victor Gollancz -, que descrevia os efeitos da reconfiguração ruinosa do mundo promovida pelas bombas aéreas – independentemente de sua origem -, a partir da gordura dos ratos, do ganho de peso das moscas, da botânica dos escombros e dos sapatos dos sobreviventes.
Uma história natural da política pode ter marcadores equivalentes. Independentemente das crenças e das ideologias dos “atores”, há aqui uma dimensão material que se impõe à consideração. Para ir ao ponto: o PMDB é um partido natural, sem superestrutura simbólica e identitária. Sua força decorre de sua força (assim mesmo, com forma redundante); de sua capacidade de, pelo inespecífico de sua substância programática, estar em toda a parte, a dar abrigo a qualquer particularidade, desde o pentecostalismo fake da família Matheus (de dois dos piores ex-governadores e flagelos do Rio de Janeiro, que assolaram o estado de 1998 a 2006) à erudição jurídica, tribunícia e grave do ministro Jobim; sem excluir a fúria do governador Requião e a pregnância sociológica dos hábitos do deputado Jader Barbalho. Em notação politológica, trata-se de um partido catch all. Um captador total; uma espécie de guarda-chuva generoso que abriga um amplo consórcio de famílias políticas locais e estaduais, em todos os espaços geográficos e institucionais da federação.
Não há, ao que parece, nada de ruim que não se possa se dizer a respeito do PMBD, a não ser afirmar que seja algo singular e específico. Ao contrário, o partido simboliza, em forma extremada, o experimento limite da cartelização da política. Houve um tempo em que se acreditava que partidos operavam como organizadores de identidades sociais, culturais e ideológicas do eleitorado. Para utilizar a linguagem dos contabilistas, naquela altura supunha-se que os partidos reduziam os “custos de informação” dos eleitores a respeito do que se passava na vida pública, na medida em que forneciam direções e versões sobre o que corria pelo mundo. Quer isto dizer que, a um só tempo, os partidos educavam e representavam os eleitores; eram, mesmo, condição de passagem para a vida pública, das aflições, percepções, expectativas e interesses dos assim chamados cidadãos.
Diante dessa imagem, a experiência do PMBD proporciona um efeito de esclarecimento. Sem qualquer subterfúgio, ou pudor doutrinário, o que exibe é um cenário no qual famílias e clãs políticos sob seu abrigo disputam os despojos do voto. Do outro lado do espelho, esse mesmo voto pode ser apresentado como conquista, em cuja história se inscreve uma martirologia e uma acumulação imemorial de expectativas. Mas, o cinismo institucionalista nos induz a supor que o voto se faz inteligível do ponto de vista dos que o capturam. A bela história da conquista de sua universalização colapsa na rotina imposta por aqueles que o capturam. Nada na experiência brasileira representa tal patologia republicana como o PMBD.
Na micropolítica, a hegemonia do partido nas duas casas fixa no processo da sucessão de 2010 o lugar por ele a ser ocupado. O antigo jogador João Pinto, do glorioso Futebol Clube do Porto, dizia que “prognósticos só podem ser feitos ao fim da partida”. Adepto daquela “equipa” e saudoso do personagem em questão, julgo que, a despeito de nada sabermos sobre quem governará o país a partir de 2011, temos a certeza de que o PMBD lá estará.

A honra do PMDB

Renato Lessa
(Publicado originalmente no Suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, em março de 2009)

Corria o verão português de 2004, o verão no qual morreu o genial Carlos Paredes, e o então Ministro da Educação da República Federativa do Brasil, Tarso Genro, fez uma visita à Lisboa. Sua agenda incluiu um encontro, organizado pela embaixada brasileira, com gente de relevo da esquerda e da vida intelectual portuguesas, para explicar o que se passava no Brasil, sob o governo Lula, ainda em fase larvar e pré-mensalão. Sob a hospitalidade do então embaixador brasileiro, o ex-deputado e ex-Presidente da República Paes de Andrade, lá estavam representantes do Bloco de Esquerda (Ana Drago), do Partido Comunista Português (António Felipe), do Partido Socialista (Mário Soares) e da Confederação Geral dos Trabalhadores de Portugal/CGTP (Carvalho da Silva). A representação dos intelectuais primou mais pela qualidade do que pela quantidade. Limitou-se ao cientista social Manuel Villaverde Cabral, um dos principais intelectuais portugueses e grande conhecedor do Brasil, que, como dizem seus compatriotas, “de borla”, levou um seu amigo que, testemunha do fato, agora o rememora neste artigo.
O Ministro brasileiro, na confortável residência diplomática do Restelo, em certo ponto de sua explanação definiu o que para si resumia o caráter do governo brasileiro: um governo que, embora dirigido por um partido de esquerda e um presidente idem, não poderia ser tomado como um “governo de esquerda”, dada a ampla coalizão que o sustentava, a incluir agremiações de centro, de direita e de lugar algum, pensei eu. Para tornar mais clara sua avaliação do paradoxo existencial, Tarso Genro mencionou o caso do PMBD, segundo ele um partido não de esquerda, mas dirigido por um presidente de honra – o próprio embaixador presente à tertúlia -, ele sim, “um homem de esquerda”. O embaixador, até então silente durante a explanação e como que tomado por um desejo forte de esclarecimento, interrompeu e acrescentou: “sou o presidente de honra de um partido que perdeu toda a honra”.
O efeito sobre os interlocutores portugueses – e, devo dizer, sobre mim mesmo – foi devastador. Até então, a conversa já possuía dose considerável de complexidade. Afinal, explicar a dialética que configura um governo que não é de esquerda, mas possui um presidente de esquerda e é identificado a um partido de idêntica extração não é tarefa simples. Pior ainda foi transmitir a mensagem de que estava em curso um processo de transformação social, de corte progressista e democrático, sob a égide da ortodoxia palocciana. Mas, a compexidade envolvida até o momento esfumou-se diante da declaração do embaixador. Para os interlocutores portugueses, além de desprovida de sentido intrínseco, a proposição afetou de modo fatal a suposição de que estavam sob a hospitalidade de gente séria.
(É curioso e lamentável o destino dado à embaixada brasileira em Lisboa. Para ali tem sido enviada uma legião de hemiglotas e amigos dos governos da ocasião, sem qualquer traquejo diplomático, todos agraciados com o posto por razões de natureza partidária. A recíproca, por sinal, não é verdadeira. Para a diplomacia portuguesa, o posto em Brasília é de relevância comparável a postos como Londres, Paris, Madrid ou Washington. A qualidade intelectual e profissional dos representantes enviados ao Brasil por Portugal atesta tal centralidade).
Mas, o que importa é que o deputado Paes de Andrade produziu, em 2004, um desabafo cujo sentido preciso volta a emergir nas explosivas declarações do Senador Jarbas Vasconcelos, como ele um dos fundadores do partido e integrante de seu grupo “autêntico”. É importante reter o conjunto de teses posto pelo Senador. Sua premissa maior é da mediocrização generalizada do quadro político brasileiro: “a classe política hoje é totalmente medíocre”. No que diz respeito ao partido, seguem juízos mais específicos. O partido reduz-se a uma “confederação de líderes regionais” e seu componente coronelístico está presente em “90%” de sua estrutura e abrangência. Trata-se, ainda, de um partido voltado para os negócios, pragmaticamente conduzido por uma estratégia precisa: “usufruir do governo (federal) sem ganhar eleições”.
Difícil – aliás, muito difícil – discordar da avaliação do Senador Jarbas Vasconcelos a respeito de seu partido. Afinal, que sentido maior pode ser retirado da observação do que fazem, e vem fazendo há muito, personagens como Renan Calheiros, Romero Jucá, Eduardo Cunha, a não ser o fato de que exercem uma política de ocupação física e material de postos estratégicos no gigantesco mundo dos negócios da política? Alguém conhece alguma causa ou princípio imaterial que possam estar associados às suas trajetórias? (Sei que são coisas que não devem ser ditas por politólogos, mas ao ver gente desse cariz a ocupar posições de poder, como não perguntar: é para isso que votamos?)
Embora dura e pertinente, a análise do Senador deve ser ampliada. O PMDB, movido pela lógica exposta por um de seus próceres – ainda que dissidente – exerce um efeito de grave contaminação sobre a política brasileira. O fato de ocupar um lugar tão central e estratégico na política brasileira não torna visíveis apenas as suas patologias internas enquanto partido. É a própria qualidade da vida pública que é afetada, quando o partido impõe-se como esteio de “governabilidade” e como garantidor de aquiescência legislativa. O PMDB impõe uma lógica política de contaminação a seus parceiros que, no processo de interação, tornam-se cada vez mais parecidos.
Em termos diretos, a presença do PMDB como base da “governabilidade” no país – não importa quem esteja a governar - é um dos aspectos mais nefastos da vida pública brasileira. Não deve tranqüilizar a ninguém, medianamente preocupado com a qualidade da democracia brasileira, saber que o governo do dia é estável, por possuir apoio parlamentar do PMDB. O partido é a negação do princípio da representação. Exige, como condição de existência, a vigência de uma cultura política autárquica, na qual o parlamento é um espaço inviolável de negociações com o Executivo. Nessa rede de barganhas, o voto conta apenas como dimensão material e numérica. As temporadas de captura de sufrágio que se abatem sobre o país a cada dois anos não parecem estar a serviço do fortalecimento dos mecanismos de representação política. Em grande medida, reduzem-se a um método eficaz de seleção de operadores políticos – parlamentares - cujo comportamento é ininteligível do ponto de vista dos princípios da representação. Como explicar, por exemplo, que um obscuro deputado carioca, do PMBD, tenha sido considerado pelo governo federal como “dono de Furnas” e encarregado da prerrogativa de indicar seu presidente? O deputado em questão, por decisão de seu partido, controlava importante comissão na Câmara de Deputados, com considerável poder de chantagem sobre o Executivo.
Os politólogos dirão que isso é da vida e que se os homens fossem anjos, o governo não seria necessário. Tudo bem, que seja. Mas, honestamente, cabe ainda falar em “representação política” quando a vida pública do país é regida pela rafaméia nomeada pelo Senador Jarbas Vasconcelos? É difícil imaginar uma alternativa curativa ao “mal do PMDB”. O próprio Senador em sua crítica não pode ser tomado como politicamente inocente. A despeito da pertinência do que diz, seu movimento tem a clara finalidade de, como diz, “dar um Norte” à dissidência que em 2010 marchará com José Serra. Há uma estranha dialética no ar: o Senador e seus adversários dão, afinal, passos necessários para que o PMBD esteja no governo da República, a partir de 2011, sem ganhar as eleições.
(Publicado no suplemento Aliás, do Estado de São Paulo, em março de 2009)

Linchamentos

Renato Lessa
(Publicado orginalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, em abril de 2009)

Há cerca de cinco anos, em um subúrbio carioca, dois rapazes, acusados da prática de assalto à mão armada, foram linchados por uma multidão. A polícia encontrou o fato já consumado e fez apenas uma prisão em flagrante: uma idosa sobre um dos cadáveres, com uma colher de sobremesa, a arrancar os olhos do que restou de um dos supostos meliantes. Levada para a delegacia, nada mais lembrava do transe que a fez participar do ritual de justiçamento
José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo, há quarenta anos dedica-se à recolha de informações a respeito dos linchamentos no Brasil, práticas coletivas que vitimam prioritariamente homens pobres e são praticadas por grupos vicinais urbanos, que incluem homens, mulheres e até mesmo crianças. Martins possui um arquivo no qual, desde 1940, estão registrados cerca de 2000 casos. Segundo ele, “o Brasil lincha desde o século XVI” e é o país no qual ocorre o maior número de linchamentos”.
Ainda assim, quase nada sabemos a respeito de porque linchamentos ocorrem. A respeito dos olhos arrancados, Martins dá-nos explicação sugestiva: mais do que destruir o corpo dos vitimados, a multidão que lincha visa apagar todos os sinais de humanidade, o que inclui o propósito de eliminação de suas “almas”. Sem os olhos, condenam-se a uma desorientação eterna, sem qualquer possibilidade de remissão.
Há, por certo, marcadores mais objetivos. Os lincháveis são, em geral, indivíduos acusados de roubos – associados a atos violentos – e, sobretudo, de estupros e crimes sexuais. As multidões de linchadores localizam-se, em sua maioria, nas periferias pobres, com baixa presença dos poderes públicos. Demonstram, ainda, descrença na capacidade punitiva e reparadora da justiça e desconfiam (muito) da polícia. Mas, dizer isto é muito pouco. Quantos brasileiros, afinal, identificam-se com o prontuário social acima delineado, sem que jamais lhes tenha ocorrido participar de um linchamento?
O antropólogo moçambicano Carlos Serra, da Universidade Eduardo Mondlane, tem analisado as “infra-estruturas sociais, na retaguarda dos linchamentos” em seu país - um dos campeões mundiais -, praticados em três modalidades, de acordo com suas vítimas: (i) acusados de roubo e estupro”(homens de 18 a 29 anos); (ii) acusados de feitiçaria (mulheres) e (iii) submetidos à morte social (por mutilação e imposição de sinais físicos, em geral a “feiticeiros”)[1]. Os sinais infra-estruturais estão aqui presentes: criminalidade descontrolada, desemprego, concentração demográfica, etc... Mas, ainda assim, nem todos os submetidos a tais condições passam ao ato, como diriam os psicanalistas.
Carlos Serra analisou redações de crianças do ensino primário, de 11 a 13 anos, desenvolvidas a partir das seguintes perguntas: “o que se deve fazer a um ladrão?” e “o que se deve fazer a um feiticeiro?”. No caso dos ladrões a resposta padrão foi “infringir-lhes castigo prévio e depois entregá-los à polícia”. Para as feiticeiras, a morte pelo fogo. As redações revelam ainda o peso de uma cultura de justiça punitiva e da familiaridade com o castigo físico como forma de correção. A impressionante análise de Carlos Serra inclui, ainda, o relato da explosão de alegria, presente no ritual do linchamento, percebido e vivido como experimento de purificação.
As razões dos linchamentos parecem esfumar-se na própria crueldade humana, tema milenar e sempre inacabado. Afinal, o que conduz membros da espécie a algo como o linchamento? Ainda que as origens sejam obscuras, parece haver método na coisa e um saber acumulado pela experiência. Os linchamentos brasileiros são sempre precedidos de atos de aproximação, nos quais a vítima é atingida por pedras e pauladas. O passo seguinte é o da queda, que permite o máximo de aproximação pessoal e física com o agredido, através de golpes diretos com pés e mãos e uso de facas e instrumentos de perfuração. Mutilações nessa fase não são incomuns, desde que não matem. A fase final, desse ritual que dura cerca de 45 minutos, é representada pelo fogo, imposto com a vítima ainda viva e como garantia de que no resultado final a forma humana não mais será reconhecida. A retirada dos olhos demonstra o cuidadoso zelo de uma multidão capaz tanto de atos de extrema crueldade, como grande de familiaridade com as mais comezinhas práticas inofensivas da vida quotidiana.

[1]. Ver http://www.oficinadesociologia.blogspot.com/.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Mundo Lattes I: A fábula do pequeno Olson

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, em março de 2009)
Há cerca de uma década, estive envolvido na criação da Associação Brasileira de Ciência Política. Uma de minhas atribuições era a de tentar transformar colegas de profissão em afiliados. Em uma de minhas incursões, deu-se um acontecimento que permaneceu fixado em minha memória. Trata-se de algo que revela de maneira cabal o quanto de nossa adesão a teorias e hipóteses a respeito do funcionamento da sociedade e da vida política confunde-se com nosso próprio comportamento e nossas crenças pessoais. É desta fábula que quero falar. Para que ela faça sentido ao leitor, preciso antes resumir os contornos de uma teoria que exerceu – e segue a exercer - enorme fascínio entre os cientistas políticos.

Em 1965, o cientista social Mancur Olson Jr.(1932-1998) publicou um livro que viria a produzir forte impacto. Trata-se de Lógica da Ação Coletiva, obra que considerou uma das mais antigas questões das ciências sociais: porque e em que condições os seres humanos associam-se para produzir ações coletivas, voltadas para gerar benefícios comuns? Sua resposta refutou a sabedoria tradicional que sustentava que indivíduos que possuíssem algum interesse no benefício comum a ser criado teriam nisso uma razão suficiente para porem-se ao trabalho de produzi-lo.

Nonada, diria Olson, se houvesse lido Guimarães Rosa. Segundo ele, indivíduos racionais, mesmo interessados no resultado de uma ação coletiva capaz de gerar um benefício público, melhor fariam se permanecessem apáticos, sem qualquer esforço. Eis a lógica da coisa: por se tratar de um benefício público, todos – ativos e apáticos – poderão dele usufruir; mais racional, portanto, é obter os ganhos sem incorrer em custos, de tempo e de chateação. Trocando em miúdos, é como o tipo que no ponto de ônibus não faz sinal para o bólido que se aproxima, porque sabe que outros o farão e que, ainda assim, não será impedido de embarcar. Trata-se do princípio do carona – free rider: aquele que usufrui do esforço dos demais e não pode ser excluído das vantagens desse mesmo esforço.

Se assim é, como explicar que algumas ações coletivas aconteçam e que indivíduos delas participem? A resposta de Olson é de congelar qualquer idealista: as ações coletivas, sobretudo em grandes grupos, são proporcionadas pela distribuição de benefícios seletivos e/ou pela coação. A expectativa do ganho pessoal – “levar algum a mais” – é o segredo da coisa. A coação física e moral também faz das suas. São fatores dessa natureza que levariam seres egoístas a se mobilizarem pelo bem comum.

A teoria de Olson foi bastante criticada. Com que justificativa, afinal, poder-se-ia tomar o comportamento de egoístas como algo natural ou racional? Por outro lado, historiadores e cientistas sociais descrevem o tempo todo ações coletivas fundadas em bases afetivas, simbólicas ou políticas, nas quais a lógica utilitarista – cálculo de custos e benefícios - de Olson parece estar ausente. Com essa breve descrição, volto à fábula.

Em uma das incursões para atração de adeptos para a Associação, deparei-me com a seguinte pergunta de um jovem cientista político: “que incentivo seletivo você oferece para que eu me associe”? O jovem carona clamava pelo seu benefício especial. De imediato, percebi que a teoria de Olson – independentemente de sua capacidade explicativa - deixara de ser uma hipótese a respeito do funcionamento da sociedade, para transformar-se em um guia de auto-ajuda.

O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) exumou, em um livro publicado postumamente em 2001 – Dits et Écrits -, um antigo conceito do cristianismo antigo, o de exomologese. O significado literal é o de uma confissão pública, uma encenação da uma verdade tida por absoluta por aquele que confessa. Para Foucault, trata-se de uma afirmação enfática na qual o sujeito liga-se a essa afirmação, aceitando todas as suas conseqüências. Nesse sentido, fazer a exomologese de uma teoria que parte do suposto de que os seres humanos são, por natureza, egoístas, significa adotar o egoísmo como forma de conduta pessoal.

Para além das implicações morais, há aqui um grave problema. Teorias são hipóteses a respeito do mundo, e não orientações absolutas para questões de escolha pessoal.

Crime, violência e territorialidade

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, vol. 44. julho de 2009)
Os espaços de uma cidade não são fixados por barreiras e marcadores físicos. São antes constituídos por formas de ocupação e de uso sociais. É essa dimensão da criação social dos espaços que institui a segmentação física da cidade. Todas as cidades, por definição, abrigam dinâmicas nas quais a invenção e reiteração de usos sociais do espaço estabelecem marcas físicas, mais ou menos permanentes, no desenho urbano. Lembro-me, com freqüência, de uma bela e já longínqua aula de Aziz Ab´Saber, ao ar (nem tão ) livre da Serra de Cubatão, na qual ele dizia algo assim: “a Geografia estuda o rebatimento da vida social sobre o espaço territorial”.
Estudiosos importantes da vida urbana, tais como Jane Jacobs (1916-2006) e Richard Sennet, ensinaram que o atributo mais importante de uma cidade é o da diversidade. Se algo distingue as experiências urbanas das não-urbanas é o fato de que as primeiras são marcadas pela simultaneidade de usos sociais dos espaços. Um milharal ou uma plantação de soja, por exemplo, são espaços igualmente sociais, porém monotemáticos. Uma praça pública, ao contrário, enseja utilizações de ordem variada: seu desenho físico não antecipa a quantidade e a qualidade dos usos que poderá vir a abrigar. A diversidade urbana, com efeito, é constituída por certa não-especialização dos espaços e pela possibilidade sempre aberta de reinventá-los, ainda que suas marcas físicas permaneçam inalteradas.
Na via oposta, há, contudo, dinâmicas sociais que fazem com que os espaços se especializem, com redução do âmbito da diversidade que poderiam conter. Bairros industriais, por exemplo, concebidos a partir de considerações logísticas seguem tal padrão. O declínio das atividades econômicas que os sustentam, nesse caso, determinará de modo fatal a degradação do espaço urbano que elas configuraram.
Se pensarmos a experiência do Rio de Janeiro, uma das características mais instigantes da sociabilidade carioca contemporânea pode ser percebida nos efeitos da criminalidade e da violência na organização e na segmentação do espaço da cidade. Parte considerável da vida urbana é controlada por grupos armados que detêm domínio territorial de difícil erradicação. O tema das relações – de oposição, cooperação e complementaridade – entre narco-tráfico e milícias, tão evidente nas representações que fazemos da cidade, mais do que revelar os termos de uma “guerra”, indica a presença de um padrão de controle territorial fundado no uso da violência e do terror. Traficantes e milicianos são modalidades de uma forma sociológica comum: grupos armados com domínio territorial. Um domínio associado ao controle de uma atividade econômica diversificada, em diversos “ramos”: drogas, serviços de segurança, transporte coletivo, bujões de gaz, televisão a cabo, etc... O produto agregado desse “quarto setor” – o da economia ilegal – não é desprezível, em seu volume de riqueza e na sua capacidade de incorporar “trabalhadores”. É o que atestam as legiões de jovens que compõem o exército de reserva do tráfico e a imparável fonte de milicianos, advinda das supostas forças da ordem (polícias e corpo de bombeiros)
O cenário sociológico dessa ocupação territorial, para além da criminalidade, pode bem ser revelado por expressão cunhada por Max Weber, e em boa hora exumada pelo sociólogo Loic Wacquant, a de “capitalismo de pilhagem”. Trata-se de dinâmicas capitalistas à margem da lei. O que não as impede contar com representantes, ou ao menos simpatizantes, nas esferas legais. O domínio territorial exercido por esses grupos transforma vastos espaços da cidade em campos de pilhagem e predação. Para além do desafio ao Estado – supostamente o detentor do monopólio do uso legítimo da força – inscreve-se no horizonte de possibilidades da cidade uma imagem apocalíptica, a da territorialidade rígida e segmentada, controlada pelos detentores do monopólio do uso de fato da força, sobre cada uma das parcelas da vida urbana sob seu império.
Mais do que uma questão de segurança pública, a desarticulação dos grupos armados é uma exigência para a viabilidade da cidade democrática.