terça-feira, 28 de julho de 2009

Crime, violência e territorialidade

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, vol. 44. julho de 2009)
Os espaços de uma cidade não são fixados por barreiras e marcadores físicos. São antes constituídos por formas de ocupação e de uso sociais. É essa dimensão da criação social dos espaços que institui a segmentação física da cidade. Todas as cidades, por definição, abrigam dinâmicas nas quais a invenção e reiteração de usos sociais do espaço estabelecem marcas físicas, mais ou menos permanentes, no desenho urbano. Lembro-me, com freqüência, de uma bela e já longínqua aula de Aziz Ab´Saber, ao ar (nem tão ) livre da Serra de Cubatão, na qual ele dizia algo assim: “a Geografia estuda o rebatimento da vida social sobre o espaço territorial”.
Estudiosos importantes da vida urbana, tais como Jane Jacobs (1916-2006) e Richard Sennet, ensinaram que o atributo mais importante de uma cidade é o da diversidade. Se algo distingue as experiências urbanas das não-urbanas é o fato de que as primeiras são marcadas pela simultaneidade de usos sociais dos espaços. Um milharal ou uma plantação de soja, por exemplo, são espaços igualmente sociais, porém monotemáticos. Uma praça pública, ao contrário, enseja utilizações de ordem variada: seu desenho físico não antecipa a quantidade e a qualidade dos usos que poderá vir a abrigar. A diversidade urbana, com efeito, é constituída por certa não-especialização dos espaços e pela possibilidade sempre aberta de reinventá-los, ainda que suas marcas físicas permaneçam inalteradas.
Na via oposta, há, contudo, dinâmicas sociais que fazem com que os espaços se especializem, com redução do âmbito da diversidade que poderiam conter. Bairros industriais, por exemplo, concebidos a partir de considerações logísticas seguem tal padrão. O declínio das atividades econômicas que os sustentam, nesse caso, determinará de modo fatal a degradação do espaço urbano que elas configuraram.
Se pensarmos a experiência do Rio de Janeiro, uma das características mais instigantes da sociabilidade carioca contemporânea pode ser percebida nos efeitos da criminalidade e da violência na organização e na segmentação do espaço da cidade. Parte considerável da vida urbana é controlada por grupos armados que detêm domínio territorial de difícil erradicação. O tema das relações – de oposição, cooperação e complementaridade – entre narco-tráfico e milícias, tão evidente nas representações que fazemos da cidade, mais do que revelar os termos de uma “guerra”, indica a presença de um padrão de controle territorial fundado no uso da violência e do terror. Traficantes e milicianos são modalidades de uma forma sociológica comum: grupos armados com domínio territorial. Um domínio associado ao controle de uma atividade econômica diversificada, em diversos “ramos”: drogas, serviços de segurança, transporte coletivo, bujões de gaz, televisão a cabo, etc... O produto agregado desse “quarto setor” – o da economia ilegal – não é desprezível, em seu volume de riqueza e na sua capacidade de incorporar “trabalhadores”. É o que atestam as legiões de jovens que compõem o exército de reserva do tráfico e a imparável fonte de milicianos, advinda das supostas forças da ordem (polícias e corpo de bombeiros)
O cenário sociológico dessa ocupação territorial, para além da criminalidade, pode bem ser revelado por expressão cunhada por Max Weber, e em boa hora exumada pelo sociólogo Loic Wacquant, a de “capitalismo de pilhagem”. Trata-se de dinâmicas capitalistas à margem da lei. O que não as impede contar com representantes, ou ao menos simpatizantes, nas esferas legais. O domínio territorial exercido por esses grupos transforma vastos espaços da cidade em campos de pilhagem e predação. Para além do desafio ao Estado – supostamente o detentor do monopólio do uso legítimo da força – inscreve-se no horizonte de possibilidades da cidade uma imagem apocalíptica, a da territorialidade rígida e segmentada, controlada pelos detentores do monopólio do uso de fato da força, sobre cada uma das parcelas da vida urbana sob seu império.
Mais do que uma questão de segurança pública, a desarticulação dos grupos armados é uma exigência para a viabilidade da cidade democrática.

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