sábado, 30 de março de 2019

Duas ou três coisas que eu sei sobre ela: notas sobre um republicídio



Nota: O ensaio transcrito a seguir foi originalmente escrito quando o despautério de 31 de março de 1964 completava trinta anos, e foi publicado em diversas ocasiões. Muita coisa mudou, de lá para cá, menos a marca inerente de estupidez do evento, além do legado deletério que impôs  ao país.
O extremista que pretende nos governar tentou nos impor a vergonha de uma comemoração nos quartéis. Em tempo hábil, a coragem cívica de várias iniciativas individuais e coletivas encontrou na parte não reacionária do sistema de justiça brasileiro devida acolhida, e a provocação não teve livre curso.
Ainda assim, as autoridades militares emitiram nota alusiva ao evento de 1964, atenuando sua marca de origem e acenando com loas à democracia. Fizeram-no, contudo, sem alterar o principal: a crença de que as Forças Armadas podem intervir, a qualquer momento, para “corrigir” a história do país. Sua pretensa identidade com os “anseios dos brasileiros” confere-lhes, ao que parece, mandato permanente para tal. Tal crença esteve presente no núcleo do despautério de 31 de março de 1964 e, ao que tudo indica, está no meio de nós e deve ser, sem descanso, combatida.
Segue o ensaio.

Duas ou Três Coisas que Eu Sei Sobre Ela: notas sobre um republicídio
Nem ressentido, nem desmemoriado. Na tarde de 31 de março de 1964, parte da família dirigia-se a Jacarepaguá, em busca de alguma granja, para comprar ovos e aves. Desde sempre, ao que me lembre, foi assim: ao menor sinal de crise grave no país, minha mãe agia como a boa cunhada de Alexis de Tocqueville e diante da virtualidade do caos, pensava exclusivamente na saúde e na segurança dos seus e na integridade de sua despensa. Ao volante, meu pai, professor da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, a gloriosa Fenefi. O mais pacífico e inofensivo dos comunistas, prestes a ingressar na lista negra do famigerado Eremildo Luis Vianna, espécie de vilão e ente maligno que assolou o fim da minha infância. Ao meu lado, no banco de trás, minha jovem tia, militante do não menos glorioso CACO (Centro Acadêmico Candido de Oliveira), da Faculdade Nacional de Direito, invejando, com certeza, meus tios, a postos na Cinelândia, a apedrejar tanques. Na volta, pela Tijuca, chuvas de papel picado, lençóis brancos nas janelas, crucifixos e gritos histéricos e agressivos de “viva Lacerda” e “fogo na canalha comunista” indicavam que havíamos perdido.
Na manhã do dia 1o de abril de 1964, na esquina da Rua Joaquim Nabuco com a Av. Atlântica, no então bucólico Posto 6, um coronel do Exército salta de um Citroën preto e caminha em direção ao sentinela que guardava a entrada do Forte Copacabana. A bofetada no rosto do praça, transmitida ao vivo pela saudosa TV Rio, eliminou um dos supostos focos de apoio ao Presidente João Goulart, a essa altura politicamente desenganado. Carlos Heitor Cony, em crônica memorável publicada no dia seguinte, lembra ainda a preocupação do referido oficial em pôr dois paralelepípedos no meio da então única pista da Av. Atlântica: “precisamos parar os tanques do I Exército!” O I Exército não apareceu. Na verdade, ele reuniu-se aos demais Exércitos e à Marinha e à Aeronáutica para iniciar o experimento que pôs fim à República de 1946. Os paralelepípedos, inúteis, foram separados pelo próprio Cony, sem qualquer esforço, em um leve movimento com a ponta do pé.
Mas, ao contrário dos paralelepípedos de Cony, duros e objetivos como a verdade deve ser, os acontecimentos de 1964 estão sujeitos à dissipação e à plasticidade. Lembrá-los hoje significa transitar por um insolúvel conflito de interpretações.
A chamada revolução de 1964 possui muitos significados, atribuídos por uma legião de cientistas sociais e intérpretes. Meu próprio treinamento profissional, nesse caso, não tornaria absurdo propor ou enfatizar alguma dessas visões ou sugerir qualquer bricolage.
Há, por exemplo, quem lhe negue o rótulo oficial de “revolução” e lhe rebaixe à abjeta categoria de “golpe”, gênero propício, segundo notação de Paulo Mercadante, a respeito da proclamação de 1889, ao surgimento de “energúmenos, fantoches e burocratas”. Mas, trata- se a meu juízo de pouco heróica e ineficaz vingança dos conceitos contra os vencedores na vida real. Golpe ou revolução, não importa. Falar de 1964 é dizer do meu ingresso na vida política adulta, pelas mãos do medo. Que o leitor perdoe o que poderá julgar como excesso de idiossincrasia. Aqui, imagino tão somente seguir um ensinamento de Max Weber: na impossibilidade de erradicar nossos valores, preferências e, acrescento eu, taras, torná-los explícitos para que sejam controlados por juízos externos.
Tão certo quanto isso é o fato de que para além da memória e do trauma, os eventos históricos são permanentes, posto que decantam na vida comum, para além dos delírios da subjetividade. Sendo assim, devem ser submetidos a procedimentos básicos de datação. Ainda não será dessa vez que nos livraremos da imprecisão, já que não dispomos de qualquer equivalente, nesse caso, ao carbono 14, ele mesmo muito impreciso. A datação e o sentido dos fenômenos históricos dependem de um ato tão crucial quanto arbitrário, qual seja o de definir os limites temporais dos eventos a considerar: em que momento começam; quando cessam de produzir efeitos relevantes. Os acontecimentos que, em 1964, erradicaram a democracia política em nosso país estão também sujeitos a essa plasticidade do tempo. Quando começaram? Que ordem de coisas, genealogia ou causa remota devem ser evocados? Thomas Mann, em José e seus Irmãos, já nos advertia de quão “fundo é o poço do passado”. Até onde, portanto, devemos retroceder?
Há quem julgue que para entender o republicídio de 1964, devemos proceder à uma dissecação ou arqueologia do comportamento militar no Brasil. Os militares que lideraram a aventura de 1964 são, nessa chave, dotados de uma vetusta ancestralidade: seus sinais estão bem ali, nos egressos da Guerra do Paraguai, que protagonizam a Questão Militar e uma atitude salvacionista; no difuso e tropical positivismo do início da República, no movimento dos tenentes, na década de 20, no envolvimento com a modernização autoritária e com o anti-comunismo dos anos 30 e 40, etc... A homenagem genética cria, retrospectivamente, uma fatalidade histórica, algo assemelhado à natureza, domínio por definição inerradicável e invencível. A transformação do “componente militar” em algo assemelhado ao mundo natural vem, com freqüência, associado a uma perspectiva conspiratória. Por essa pista, entender 1964 significa reconstituir exaustivamente toda a trama de conspirações, já que a ordem do histórico é a ponta aparente de maquinações urdidas em segredo. Assim, mentes simplórias, exemplares paradigmáticos da mediocridade nacional, nulidades lombrosianas e ressentidos em geral acabam sendo agraciados com a prerrogativa do protagonismo. Suas truculências e exercícios mentais tacanhos passam a ser abrigados por um gênero literário nobre: o das memórias e depoimentos, espécies brasileiras de “lavagem de biografia”.
Outra perspectiva, com muito maior plausibilidade, concedo com prazer, percebe os mesmos acontecimentos como produzidos pela dinâmica da política, circunscrita ao momento específico da primeira metade dos anos sessenta. O desfecho, nesse caso, nada deve à fatalidade, mas ao resultado produzido pela dinâmica do próprio conflito político. Isso equivale a dizer que outros desfechos para a crise de 1964 eram possíveis e que o seu resultado foi contemporâneo de si mesmo.
Passados quarenta anos do republicídio de 1964, estamos longe de algo assemelhado a um consenso a respeito dos seus significados (na verdade, porque haveríamos de estar perto?). Ainda que tenha simpatias claras e aversões fortes, diante do conflito das interpretações a respeito de 1964, não pretendo refutar nenhuma delas em particular. Pretendo proceder à moda de alguns historiadores do Holocausto que, diante da variedade de interpretações, da presença de um certo relativismo e da criminosa tentativa de negação do que ocorreu, pretendem fornecer uma narrativa básica, sobre a qual ênfases e leituras diferentes podem ser propostas. Nesse sentido, talvez um pouco ingênuo, sustento que uma narrativa básica sobre os eventos de 1964, e a experiência histórica deles resultante, deve destacar dois aspectos centrais:
1. O movimento de 1964 foi um evento republicida.
2. O experimento civilizatório dele decorrente foi marcado pela erosão da malha de 
proteção política e institucional da sociedade, cujo resultado foi a combinação perversa entre rápida transformação social e virtual ausência de mecanismos intitucionais de representação e participação políticas.
O caráter republicida pode ser atestado se lembramos da “República que a revolução destruiu”, para usar o mote de Sertório de Castro. O Brasil, em 1946, de modo efetivo “proclamou” a República. Explico: trata-se da nossa primeira experiência de eleitorado de massa, eleições e sistema partidário competitivos, rotinização de um sistema representativo consistente e pluralista, federalismo, diversidade política regional, etc... Ainda que um certo preconceito oligárquico e elitista tenha imposto à República de 1946 o rótulo de “populista”, julgo ser uma violência nela não reconhecer o nosso primeiro experimento democrático. Seu principal pecado foi não sê-lo de modo mais completo, já que os comunistas foram privados da legalidade em 1947 e os analfabetos não faziam parte do corpo eleitoral. O movimento de 1964, em poucos anos, elimina a principal característica e virtualidade da república de 1946: a da possibilidade da representação política de parte importante do país, em sua diversidade e complexidade. Isso se deu graças à extinção dos partidos do regime de 1946, a erradicação de parte importante da classe política e a drástica redução do peso do voto popular no sistema decisório.
A descrição da bestialogia e da truculência do regime de 1964 já está feita. Basta ouvir as vozes, e ler nos corpos e nas narrativas dos que exerceram oposição nesse país, que nesses lugares será encontrada essa parte da história. Aqui o que quero destacar é a terrível experiência mais geral de uma sociedade que em vinte anos é submetida à inédita combinação entre modernização econômica vertiginosa, deslocamentos espaciais, predação ambiental, dilaceração de identidades, urbanização e desconsideração completa de custos humanos e sociais, na busca dos chamados “interesses nacionais”. E aqui entro no segundo tópico da narrativa básica, a que aludi. O que a experiência civilizatória de 64 impõe ao país é o predomínio puro da esfera econômica sobre a vida social, sustentada em doses fortes de autoritarismo e estupidez. A política, pela coação e pela pusilanimidade, foi posta a serviço dessa razão de estado obcecada pela modernização econômica. É claro que, em princípio, não há nada de errado com a modernização. O problema todo ocorre quando a sociedade não tem à sua disposição formas de expressão e representação política. Os meios disponíveis para tal foram eliminados pelo republicídio de 1964. Em outras palavras, o país experimentou uma perversa combinação: crescimento a qualquer custo e ausência de democracia política.
As bases doutrinárias da precedência da razão econômica sobre a democracia política já estavam postas nos anos cinquenta, em pensadores díspares, tais como Celso Furtado e Roberto Campos. Trata-se da linguagem dos “obstáculos políticos ao desenvolvimento”. Esses obstáculos são, em geral, os da democracia, odiosa forma de governo - melhor apenas do que todas as demais - que impõe um ritmo lento para a deliberação pública e é capaz de abrigar tanto biltres como pessoas decentes. O argumento anti-democrático foi admiravelmente reconstituído por Roberto Campos, em 1974, quando apresenta o experimento de 1964 como um “autoritarismo consentido”(sic), caracterizado, entre outras coisas, pela adesão “inconsciente ou subconsciente” da população por um padrão de maior “disciplina social”, em detrimento da “exaltação democrática”. É reconfortante aqui lembrar dos resultados eleitorais de novembro de 1974, a primeira derrota eleitoral do regime de 1964, em escala quase nacional, e que demonstra a ilusão do consenso sustentado por Roberto Campos. Mas, cético que sou, sei que superstições não são refutadas por fatos. E essa foi a superstição que sustentou o regime de 1964: a de que a política democrática é inimiga da disciplina social e do progresso e de que um dos principais agentes de irracionalidade política no país é o Poder Legislativo.
O legado de 1964? Bem, um dos legados está contido em um singular absurdo. O regime, com seu conhecido apreço por eleições e por instituições democráticas, seguiu emitindo títulos de eleitores. Com efeito, o eleitorado brasileiro entre 1966 e 1986, saltou de 22.387.251 para 69.166.810 eleitores, um acréscimo de mais de 200%. Desconheço outro eleitorado no planeta que tenha tido crescimento semelhante, em contexto de ausência de democracia política. Mas, talvez o principal legado seja o do predomínio de um economiscismo difuso e de uma desvalorização generalizada da política e das instituições. Afinal, passados tantos anos, a linguagem do imperativo da modernização econômica e dos obstáculos políticos e institucionais ao desenvolvimento está viva. Viva e a erodir as expectativas e apostas simples de mulheres e homens igualmente simples desse país. Nesse sentido, o regime de 1964 é um experimento vitorioso e tem suas superstições cuidadosamente mantidas por essa coalizão entre derrotados e vitoriosos de 1964, que tem nos governado.
O saudoso Francisco Iglesias, escrevendo no ocaso do regime militar, há cerca de 15 anos atrás, sintetizou com elegância e economia o legado do experimento 1964: “Nele, a liberdade conheceu um de seus mais longos e tenebrosos eclipses. A negação da democracia, constante na trajetória brasileira, tem então forma agressiva, ainda não conhecida. Muita gente sofreu, foi exilada, torturada, morta. O Brasil cruento teve a expressão máxima”. Por fim, a profecia, ainda não cumprida: “O povo saberá sair do atoleiro por suas próprias mãos, repondo a pátria no seu caminho de onde a tirou a má vontade ou a falsa compreensão do Brasil”.
Ainda que não tenha ânimo suficiente para profecias, tenho a convicção contrafactual de que o Brasil pós 64, sem 64, teria sido melhor do que o que foi inventado com 64. Esse acidente infeliz deixou marcas indeléveis na história do país. Quanto à minha, devo dizer que aos revolucionários de 1964 devo o fim da minha infância e o usufruto precoce do medo e das esperanças dos adultos.