terça-feira, 29 de junho de 2010

Sem pressão, não há representação I

Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo, em 9 de maio de 2010)

Não é que os parlamentos em geral possuam limitada capacidade de e disposição para auto-reforma. Na verdade, e com alguma freqüência, costumam introduzir alterações regimentais internas, com impacto sobre a distribuição de poder entre as suas partes. De acordo com a direção da mudança adotada, líderes podem ser fortalecidos, em detrimento das bancadas, ou vice versa; procedimentos de auto-depuração podem ser aperfeiçoados, ou transformados em mecanismos de auto-proteção. Enfim, são muitas as possibilidades, e parlamentares – aqui e alhures - além de legislar, alteram as condições sob as quais legislam.
Menos freqüente – e a chave aqui é um tanto otimista - é a auto-reforma voltada para restringir as “liberdades” dos parlamentares. Com o termo aspeado quero designar processos de mudança que incidem sobre as relações entre parlamentares e seus próprios mandatos. Não é que não haja, no interior do Congresso brasileiro, para trazer a coisa ao terreno local, vozes favoráveis a reformas e à introdução de algum controle público sobre o que fazem os parlamentares, sobre os modos pelos quais obtêm mandatos e sobre como os compreendem e exercem. O fato é que, por minoritárias, dificilmente tais vozes reúnem condições políticas para deflagrar processos de mudança na matéria. Nunca é demais lembrar que nada pior do que restrições comportamentais para animais políticos que imaginam o paraíso como um cenário no qual obteriam reeleições sucessivas. Nesse sentido, quanto menos restrições, melhor. Se inevitáveis, que incidam sobre os outros. Se não der jeito mesmo, e em último caso, que se apliquem a todos.
O tema, por certo, é sensível e explosivo. É de recordar, por exemplo, a “doutrina” da propriedade pessoal do mandato, diante de propostas de limitação, advindas do Judiciário, da troca de partidos. Pela “doutrina” da pessoalidade do mandato, este cola-se à persona de seu detentor, que a carrega por toda a duração de sua investidura, independentemente da mobilidade de seus vínculos partidários. A mesma querela incide sobre o debate a respeito das imunidades, cuja extensão abriga aspectos de natureza criminal.
De um modo geral, tem sido o Judiciário o responsável por introduzir reformas que poderiam ser percebidas como regulações externas à atividade dos parlamentares. Regulações, por exemplo, que incidem sobre sua mobilidade e sobre suas vidas pregressas. O próprio Tribunal Superior Eleitoral, há algo como um ano, considerou a matéria da vida pregressa de candidatos, tema caro aos envolvido no movimento dos “ficha limpa”. Trata-se de tema de alguma relevância, pois incide sobre o modo pelo qual a pretensão a ter uma biografia política insere-se na biografia, digamos, geral do sujeito em questão. Deve a vida pregressa ser considerada para avaliar se alguém pode desempenhar funções representativas (ou outras derivadas do voto)? Voto vencido na ocasião, o ministro Ayres de Brito sustentou que não fazia sentido não aplicar aos que postulam ocupar cargo eletivo, as mesmas restrições que se apresentam a pretendentes a outras funções públicas. Bastar-lhes-ia uma condenação para que seus prontuários inviabilizassem a pretensão. Perguntava o ministro: haverá função pública mais relevante – em suas implicações igualmente públicas – do que a do exercício de um mandato eletivo?
Entendeu o plenário do TSE, na altura, que decidir em tal direção implicava em usurpação legislativa. Em outros termos, o tribunal estaria a fazer uma nova lei a respeito de inelegibilidades e não a interpretar e aplicar o quadro jurídico existente, tal como gostaria o bom Montesquieu. Em tempos de desenfreada judicialização da política, este foi um notável momento, pero um tanto seletivo, de auto-contenção. O voto do ministro Eros Grau foi emblemático na defesa do que lhe parecia ser o quadro jurídico, não alterável por decisão não-legislativa.
Vida que segue, a alternativa à questão passou a depender do que poderiam fazer os parlamentares, detentores não-exclusivos da função de legislar. De modo ainda mais remoto, e um tanto panglossiano, cabe registrar a existência de rejeição, in limine, de qualquer intervenção no “mercado político”, com a conseqüente atribuição ao “eleitor” do papel de manejar a cimitarra reparadora. O capítulo mais recente da história, contudo, foi ordenado por enredo distinto: nem decisão autônoma de auto-reforma, por parte do parlamento, nem a espera fideísta pela manifestação da sabedoria do “eleitor”. O processo, em andamento distinto, foi deflagrado por uma iniciativa exterior ao parlamento e aos partidos – por meio de proposta popular de legislação que exclui das eleições os chamados “ficha suja”. A iniciativa acolhida por alguns parlamentares – aqueles comprometidos com o combate ao risco de captura do parlamento por parte de pessoas que mantêm com as leis do país relações heterodoxas – tomou a forma de projeto de lei cuja tramitação positiva foi iniciada a poucos dias.
A adesão dos demais parlamentares – com a não inesperada defecção de alguns “ficha-sujíssimos” – pode sempre ser debitada na conta do cinismo e do oportunismo. Haverá quem o faça e, devo dizer, com razões respeitáveis. Mas, temo não ser esta a melhor leitura a fazer do episódio. Independentemente de da incidência temporal de seus efeitos – se para já, ou para daqui a dois anos –, a iniciativa política que associou uma ação autônoma de um conjunto de cidadãos a seu acolhimento parlamentar é uma boa notícia e um bom indício para os hábitos representativos locais. Se lido em chave apropriada, duas ordens de reflexão distintas podem ser desenvolvidas.
Em primeiro lugar, a iniciativa é um experimento que indica algum grau de aprendizado, por parte de um conjunto de cidadãos e de um grupo de parlamentares, a respeito do que pode significar o vínculo da representação. O comentário maduro da liderança do movimento a respeito das alterações feitas pela Câmara ao projeto original foi significativo. Embora uma as alterações – a de que a condenação em primeira instância que impede a candidatura deva emanar de um colegiado, e não apenas de um único juiz – tenha efeitos atenuantes, a liderança compreendeu a necessidade da mudança, por razões táticas e pelo entendimento de que é legítimo que o Legislativo exerça um papel de filtragem.
Por fim, trata-se de compreender, em termos mais gerais, que a qualidade da representação está associada à qualidade da demanda social por representação. Em outros termos, é necessário que os corpos legislativos sejam interpelados “de fora”. Sua qualificação não decorre de processos internos e autárquicos, imaginados por engenheiros legislativos, mas da tensão entre um exterior – o demos, e sua capacidade de exercer pressão eficaz – e um interior, do qual deve se exigir capacidade de escuta e criatividade política e institucional. No caso em questão, pressão e escuta, igualmente adequados, acabaram por dar sentido á ideia de representação. É torcer para que a moda pegue.

Sem pressão, não há representação II

Renato Lessa
(Publicado na coluna "Sobre Humanos, na Revista Ciência Hoje, de junho de 2010)

De um ponto de vista estritamente minimalista, para que a assim chamada de-mocracia representativa funcione basta que alguns cidadãos – sequer a maioria deles – compareçam com regularidade às sessões eleitorais e depositem nas urnas - ou nas máquinas - as suas escolhas. Em alguns países, nos quais o voto não é obrigatório, é possível, mesmo, que tal contingente seja minoritário no conjunto dos adultos aptos a votar. Basta que haja alguma autorização eleitoral coletiva para que um corpo de representantes seja instalado. Não se requer, portanto, dos eleitores, para que o sistema “funcione”, que devotem à política mais tempo do que o empreendido no trajeto até as sessões eleitorais e nas eventuais filas de espera. O ato de escolha não exige qualquer presença ou acompanhamento daquilo que os escolhidos fazem com o voto que deposita-ram.
Há mesmo quem defenda que este mínimo é mais do que suficiente e, até mes-mo, ótimo. Edmund Burke, pensador político e parlamentar de origem irlande-sa, porém atuante na Inglaterra do século XVIII, sustentava a tese da radical independência do parlamentar com relação a seus eleitores. Estes são movidos sempre por razões particularistas, enquanto que os representantes devem sem-pre ter em vista o interesse público. Claro está que caberia aos mesmos, em consulta exclusiva a suas consciências, determinar o que seja tal interesse público. Em tempos mais recentes, correntes importantes da Ciência Política norte-americana – a chamada escola pluralista, em particular – chegaram a afirmar que uma certa apatia pública é mesmo condição para a estabilidade das democracias. Se todos participassem ao mesmo tempo, os sistemas políticos não seriam capazes de “processar” todas as “demandas sociais” e caminhariam para uma espécie de colapso institucional. No limite, as democracias, se sustentadas em participação plena e permanente de todos os seus cidadãos, seriam ingovernáveis.
Tudo isso é muito curioso, pois conduz-nos a uma teoria da democracia que deflaciona a importância do voto e prescinde da participação política não-eleitoral como dimensão relevante do processo e do aprendizado políticos. Se é verdade que bastam alguns votos para que a escolha de representantes se efetue, é necessário acrescentar à análise a questão da qualidade da representação. Tudo indica que a qualidade da demanda social por representação afeta a qualidade da representação propriamente dita. Em outros termos, a presença de cidadãos ativos e dispostos a devotar parte de seu tempo a alguma militância cívica e à observação crítica do quer fazem os seus representantes, para dizer o mínimo, não fará mal à saúde dos sistemas reprersentativos. Pode ser mesmo que faça mal a alguns representantes, mas não fará, por certo, mal à representação.
O recente episódio do movimento “Ficha Limpa” constitui ótima oportunidade para refletir a respeito das considerações que aqui faço. Trata-se de movimento que colheu quase 2 milhões de assinaturas de eleitores, em apoio a uma iniciativa popular de projeto de lei. O projeto visava impedir candidaturas a postos eletivos de pessoas com condenações na Justiça. O projeto foi acolhido por 31 parlamentares que o introduziram no processo legislativo e acabou por ser aprovado pela Câmara de Deputados, não sem sofrer algumas mudanças atenuantes, mas que não o descaracterizaram. Independentemente do desfecho de todo o processo – no momento em que escrevo o projeto está em vias de tramitação no Senado -, há aqui algo de interessante a observar.
Antes de tudo, é necessário levar em conta que a melhoria da qualidade da re-presentação não depende tanto da definição de critérios necessários de morali-dade para o exercício dos mandatos, quanto da presença de cidadãos ativos a exercer pressão legítima e eficaz sobre o parlamento. Em outros termos, o e-xemplo mencionado vale mais pelo aprendizado do que pode significar uma cultura da representação política que exige mais do que algum comparecimento erleitoral eventual. “Representação”, sem alguma presença ativa dos representados, através de pressão e observação atenta, não passa de formalismo e de palavra vazia.

domingo, 27 de junho de 2010

Vida social e impactos da natureza

Renato Lessa
(Publicado na coluna "Sobre Humanos", na Revista Ciência Hoje, maio de 2010)

Uma das mais importantes mutações ocorridas nos tempos modernos pode ser encontrada na crescente importância conferida aos seres humanos – enquanto indivíduos – para a definição do que seja uma vida decente. Desde tempos imemoriais, por certo, houve preocupação em definir requisitos para uma vida boa. Tal tema constituiu desde então matéria para controvérsias filosóficas e morais intermináveis, e já os antigos gregos dividiam-se entre os que defendiam, pela ordem, a busca da verdade, de virtude pessoal e de felicidade como finalidades a ser perseguidas.
Com a Idade Média, os valores da cultura grega clássica acabaram submetidos à teologia. A ideia de vida boa passa a significar uma forma de vida orientada para a busca de salvação pessoal. Um conforto cujo usufruto exige, lamentavelmente, a morte daquele que o busca.
Com os tempos modernos – a partir do sec. XVI – a ideia de uma vida decente passa progressivamente a ser pensada como resultado da qualidade da própria vida em sociedade, e não de desdobramentos sobrenaturais. O tema não era de todo inédito, já que mesmo no contexto do pensamento grego clássico, os filósofos sofistas haviam atentado para tal relação. Platão fez o mesmo, em chave negativa, ao dizer que sociedades imperfeitas estão condenadas a produzir resultados imperfeitos.
A partir do Renascimento ficou clara a relação: o aperfeiçoamento das relações sociais e a qualidade do exercício dos governos são condições cruciais para uma vida humana decente. Um dos corolários dessa reorientação é a percepção de que sociedades e governos são criações dos humanos e não produtos da ação inescrutável da natureza. É o que encontramos em autores do século XVII (Thomas Hobbes), XVIII (David Hume) e XIX (Karl Marx). É virtualmente incontável a quantidade de tratados e ensaios, produzidos entre o século XVI e XVIII a respeito do melhor modo de conceber e organizar a vida social. A despeito da larga diversidade de respostas, há alguns pontos convergentes. O mais importante diz respeito à percepção de que a vida social não é constituída pela ação de fatalidades ou de imposições da natureza.
Não se tratava de onipotência diante da natureza. É certo que o processo de afirmação da dignidade humana, a partir do século XV, esteve sempre associado á busca de conhecimento crescente a respeito do que então se designava como filosofia natural. Retirada a aura de mistério, segundo a qual há uma autoria da natureza e ela possui caráter divino, a cultura moderna progressivamente emancipa os humanos e permite a progressiva investigação a respeito de fenômenos naturais. Tal perspectiva de conhecimento progressivo sobre a natureza não significou pretensão de controle sobre suas leis básicas. Indica, tão somente, que os humanos recusam-se a ocupar a posição de presas fáceis e vítimas indefesas dos processos naturais.
O terremoto de Lisboa, ocorrido na segunda metade do século XVIII, para além de seu impacto no pensamento europeu, obrigou as autoridades portuguesas a reconstruir integralmente a parte baixa da cidade. Tal empreendimento empregou técnicas inovadoras de construção, capazes de resistir a abalos sísmicos de monta. Quer isto dizer que as catástrofes naturais passaram e ser avaliadas segundo a capacidade humana de preveni-las ou de mitigar seus efeitos. Ainda que os fatores naturais estejam fora de controle, a qualidade da resposta social está sim sob responsabilidade dos governos. Nesse sentido, as catástrofes naturais não devem se pensadas apenas como aparições extraordinárias e imprevisíveis de ordem natural. Seus efeitos dizem também da qualidade da vida social sobre o qual incidem.
Desse modo, catástrofes naturais revelam tanto o modo pelo qual a natureza procede quanto a forma pela qual a sociedade refrata tais processos. De um modo geral, a qualidade dos governos tem papel crucial na extensão dos danos, assim como na evitabilidade dos mesmos.

Do negacionismo e da presença da Shoah para além de si mesma

Renato Lessa
(Publicado originalmente no número 6 da revista DEVARIM, da ARI/RJ - Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro -, em abril de 2008)

1. Ao receber o Premio Nobel em Literatura, em 2002, o escritor húngaro Imre Kertész, em seu discurso de agradecimento – intitulado “Heureca” –, foi preciso a respeito do lugar ocupado pela Shoah em sua obra. Uma presença contínua, associada a um luto permanente no qual “não existe apenas amargura, mas também um extraordinário potencial moral”. Disto deriva a associação, por ele proposta, entre a sua própria identidade como judeu e a presença do que define como um “desafio moral”: “Se para os dias de hoje o Holocausto criou uma cultura – como sem dúvida aconteceu -, seu objetivo deve ser a reparação por meio do espírito, a partir de uma realidade irreparável – uma catarse”.
Desafio de não pequena monta, posto que, para Kertész, nada teria acontecido depois de Auschwitz que o “tivesse negado ou refutado”. A relação desse grave juízo com o prêmio que acabara de receber foi estabelecida pela afirmativa que faria logo em seguida: “Nos meus escritos, o Holocausto nunca aparece no passado”. A posição de Kertész exige melhor qualificação. Por um lado, a própria idéia da irreparabilidade do campo de extermínio está a indicar que nada no que lhe sucedeu pode gerar efeitos de superação do experimento. Neste sentido, o Campo não pertence ao passado, circunstância fixa e imóvel de um tempo irremediavelmente remoto, mas aparece como elemento de um longo presente, cujos limites não se dão a ver. O próprio conceito de irreparabilidade, parece evidente, interdita qualquer perspectiva de reparação. Por outro lado, a decisão de associar a memória e a vivência da Shoah a uma obrigação moral de interpelação da experiência humana é obrigada a enfrentar inúmeros esforços de revisão e fixação dos seus significados e de negação de seu alcance ou, até mesmo, de sua existência real.

2. Passados mais de sessenta anos da derrota alemã e da libertação dos campos de extermínio, o lugar histórico e moral ocupado pela Shoah na consciência histórica e moral contemporânea permanece nebuloso e incerto. As dificuldades de inscrição já se apresentaram às primeiras tentativas de transmitir o testemunho daquilo que David Rousset denominou como a “experiência concentracionária”[2].
Primo Levi, ao longo de sua militância de testemunho, sempre recusou o topos da incomunicabilidade, fundado na crença na impossibilidade radical de transmitir aos que não viveram o inferno do Campo o que lá teria ocorrido[3]. Mas, essa posição de princípio não estava, para ele, a serviço de uma crença ingênua na transparência dos relatos e na fácil transitividade da experiência. Ao contrário, apenas uma vida dedicada ao testemunho poderia interpelar a descrença e a indiferença e, mais do que isso, educar eventuais manifestações empáticas. Sim, posto que, além de combater a descrença e a negação do ocorrido, há que trabalhar sobre as sensibilidades empáticas, sobre os que se apiedam.
Ensinar-lhes a delicada arte da solidariedade e do reconhecimento de que o Campo foi o lugar de um experimento sem precedentes. Aqui reside o núcleo do problema. A singularidade e o caráter sem precedentes da Shoah sofreram, desde a derrota do nazismo, uma vasta ordem de questionamentos e negações. Não foram poucos os que insistiram – e ainda o fazem – na comparabilidade e na comensurabilidade entre a Shoah e outros eventos de dizimação em massa de seres humanos[4].

3. O debate sobre os significados possíveis da Shoah abriga vasta diversidade. Contudo, um certo relativismo diante de tal variedade, sob pena de irresponsabilidade política e moral, não deve descurar do fato de que as interpretações não são inocentes; não emanam simplesmente de uma característica ontológica própria dos humanos, como sustentava Heidegger, mas são portadoras, elas mesmas, de premissas e, sobretudo, produzem conseqüências materiais para a própria configuração do mundo histórico e social. É neste sentido que o negacionismo deve ser retirado do abrigo da condescendência relativista e ser remetido a sua dupla inscrição: a recusa criminosa da materialidade dos crimes nazistas e a deriva político-existencial de sustentar o anti-semitismo como crença básica e o anti-sionismo como atitude política.

4. A idéia de revisionismo - e a de seu portador, o revisionista - segrega uma imagem que, à partida, não aparece como abjeta. O termo possui excelente pedigree: em termos históricos aparece no século XIX associado à causa mais do que defensável: a da revisão da condenação de Alfred Dreyfuss. Não há nada, em princípio, de errado com a idéia de revisionismo. Tudo dependerá, parece óbvio, daquilo que se pretende rever e, o que é mais importante, do grau em que a idéia de revisão implica a refutação da existência de eventos históricos esmagadoramente evidentes.
Com o pós-II Guerra verificou-se de forma progressiva a emergência de um revisionismo negacionista, com relação a Shoah, dotado de claras tinturas anti-semitas e, a partir de 1948, anti-sionistas. O revisionismo negacionista pode ser pensado como a expressão extremada e criminosa de uma questão extremamente ampla: o lugar da Shoah na consciência contemporânea. Além disso, possui muitas formas, para além de suas manifestações mais óbvias e claras. Mais do que seguir a enfadonha e impalatável trama dos autores e instituições devotados ao revisonismo negacionista, importa detectar a estrutura de seu pensamento. Jean-Pierre Vernant, em seu já clássico Les Assassins de la Mémoire, resumiu os “princípios” centrais[5]:
(i) Não houve genocídio; o que teria sido seu instrumento e símbolo – a câmara de gás – jamais existiu;
(ii) A “solução final” não teria significado senão a expulsão dos judeus para a Europa Oriental[6];
(iii) O número de vítimas judias do nazismo é menor do que comumente se supõe; autores revisionistas, tais como Rassinier e Butz, sustentam que no máximo morreram um milhão de judeus, devido a bombardeios aliados e a doenças;
(iv) A Alemanha hitlerista não pode ser julgada responsável pela guerra: os judeus são co-responsáveis pela eclosão do conflito mundial;
(v) A principal ameaça à humanidade, durante a década de 1930, não era representada pela Alemanha, mas pela União Soviética; Stalin, e não Hitler;
(vi) O genocídio judaico foi uma invenção da propaganda aliada, fortemente influenciada pelos judeus que, “sob a influência do Talmud, têm propensão à imaginação estatística”[7].

As “teses” do revisionismo negacionista são indefensáveis. Sua refutabilidade absoluta faz com que o campo no qual devem ser tratados seja o do direito penal. A fracassada tentativa de processar a historiadora norte-americana Deborah Lipstadt, feita por David Irving, em um tribunal inglês, definiu de forma clara o lugar dos negacionistas: não constitui crime dizer o que efetivamente são, que crenças sustentam e que objetivo perseguem. Como praticantes de uma “contra-história”, para utilizarmos o termo de Amos Filkenstein, não constituem desafio do ponto de vista intelectual[8].
Sua ameaça é de natureza política e criminal. O revisionismo negacionista é, contudo, apenas um dos modos possíveis da contra-história, uma “narrativa inautêntica e uma ação perniciosa” voltada para a “distorção da auto-imagem do adversário, de sua identidade, através da desconstrução de sua memória”[9].

5. O debate alemão a respeito da identidade do país no pós-guerra constitui um interessante estudo de caso, capaz de revelar o modo pelo qual diferentes interpretações da história recente daquele país conferem a Shoah papéis e lugares inteiramente distintos. Nos anos 1980 ocorreu naquele país um duplo e importante debate público, em torno de uma questão crucial: como inserir o Sonderweg no quadro mais amplo da história alemã? O debate foi deflagrado em 1985, por conta dos 40 anos da libertação, e desdobrou-se na célebre querela dos historiadores – a Historikerstreit.
Mesmo excluindo o campo abertamente criminoso ocupado pelos revisionistas, havia uma considerável diversidade de posições, todas derivadas de um problema básico, posto de forma sagaz pelo escritor Heinrich Böll: "O fato do poder nazista não ter sido derrotado de dentro e sim destruído desde o exterior...é uma das razões que poderiam explicar porque aqueles doze anos foram mais ou menos apagados da memória"[10]. Os termos dessa disputa e suas implicações dão sentido à proposição de Saul Friedlander de que o debate a respeito da história é uma discussão sobre a forma do passado na memória pública e na identidade nacional[11].
Para além do marco dos 40 anos da libertação, o debate dos historiadores – Historikerstreit - também exibiu os dilemas dessa busca pela determinação das formas do passado. De forma nada surpreendente, tal busca teve como referência central a Shoah, tal como atesta o subtítulo do documento que reúne as diferentes posições em confronto, publicado em 1987: documentação sobre a controvérsia a respeito da singularidade (Einzigartigkeit) do extermínio nacional socialista dos judeus.
A querela acabou por configurar dois campos opostos. Um deles, ocupado por historiadores de orientação liberal e de esquerda, sustentou a singularidade dos crimes nazistas e, a despeito de suas diferenças internas – divididas entre uma vertente “liberal” e outra “estruturalista” -, a conseqüente recusa em diluir a Shoah em justificativas e quadros histórico-políticos mais amplos.
Para o campo conservador – que inclui autores tais como Joachim Fest, Ernst Nolte e Andreas Hillgruber, entre outros -, se a responsabilidade dos nazistas não pode ser negada, é necessário estabelecer uma sistemática comparação entre seus crimes e outros cometidos por regimes diferentes em outros lugares e momentos. Nolte, em particular, confere aos bolcheviques a primazia da busca de aniquilação global. Em suma, por pior que tenha sido, o nazismo é comparável. Refuta-se, dessa forma, o topos da incomparabilidade. A revisão interpretativa sugerida pelos conservadores rompe com a caracterização tradicional dos perpetradores. Ainda que a criminalidade nazista não seja negada ou defendida, ela é compartilhada com os Aliados e, em particular, com o Exército Vermelho, em função de crimes que este cometeu em solo alemão. Com visível desrespeito à cronologia dos fatos, sugere-se uma perspectiva de responsabilidade compartilhada, segundo a qual entre as vítimas deve estar incluída a população civil alemã.
A perspectiva dos conservadores não ficou sem contestação. A posição do historiador Eberhard Jäckel, durante a Historikerstreit, talvez tenha sido a mais clara : O extermínio dos judeus pelo nacional socialismo foi algo inigualável, pois nunca antes um Estado, com a autoridade de seus líderes responsáveis, decidiu a anunciou a total aniquilação de um determinado grupo de pessoas, incluindo idosos, mulheres, crianças, recém-nascidos, e fez com que tal decisão fosse aplicada, através do uso de todos os instrumentos possíveis do poder disponível pelo Estado[12].

6. O lugar da Shoah na consciência histórica contemporânea ainda não está fixado de forma segura. Permanece vulnerável aos jogos do negacionismo e das relativizações históricas. O primeiro deles visa revitalizar permanentemente o anti-semitismo e anti-sionismo: se o Estado de Israel é um efeito imediato da Shoah, sua negação aparece como imperativo para que seu efeito perca qualquer legitimidade[13].
A relativização histórica não está, em princípio, imune a motivações da mesma natureza. Mas não é essa ligação abjeta que a caracteriza. A relativização, com freqüência, deve-se aos procedimentos e aos hábitos da História, enquanto disciplina. Na medida em que as representações da Shoah transitam do registro da memória para a narrativa disciplinar da História, os eventos a ela associados submetem-se aos protocolos da explicação, da comparabilidade e da contextualização racional. O risco é o do apagamento da singularidade da Shoah e dos imperativos morais que dela decorrem. A revolta do cineasta Claude Lanzman contra os propósitos de explicação do extermínio – explicar, para ele, é um ato de imoralidade – decorre dos riscos de historicização e de normalização[14].
A memória, ao contrário e tal como ressaltam trabalhos clássicos sobre o assunto, é avessa ao relativismo[15]. É, ainda, expressão de luto, de perda, registro repetido do trauma e índice da singularidade do evento ao qual se reporta. Neste sentido é particular e específica dos que a detém, não sendo, em princípio, universalizável. O desafio que se impõe aos que combatem o negacionismo e a relativização da Shoah pode ser posto nos seguintes termos: como inscrever a Shoah na experiência contemporânea, sem abrir mão do que tem de particular e incomparável.
Amos Filkenstein sugere um caminho intermediário, capaz de reter a carga existencial da memória e adquirir, por meio do uso de procedimentos da História, uma perspectiva de universalização. Designou esse meio termo como “consciência histórica”[16], uma forma de observar a experiência humana a partir da experiência do pior dos mundos possíveis. Em outros termos, história e moralidade acabam por fundir-se na observação do mundo humano.
Por muito tempo, nossa relação com a Shoah estará marcada pela aporia sugerida por Kertész: um evento irreparável como base de uma perspectiva de reparação do mundo. Reinhard Koselleck acrescenta ainda outro dilema irrecorrível: a singularidade da Shoah, para que seja determinada, exige tanto a comparação como a necessidade de abandoná-la[17]. A despeito das aporias, a Shoah é única porque, como a mais extrema modalidade de destruição de seres humanos, contém em si a experiência de todas as dizimações possíveis. É isto que faz com que a sua singularidade se inscreva no plano do universal humano.

Notas
[1]. Discurso proferido por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura em 2002. In: Imre Kertész, A Língua Exilada, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 16. [2]. Cf. David Rousset, L’Experience Concentrationnaire, Paris: Editions de Minuit, 1965. [3]. A esse respeito, ver, em particular, Os Afogados e os Sobreviventes, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, cap. IV, “Comunicar”, pp. 51-61. [4]. Uma boa amostra dessa discussão pode ser encontrada em Alan Rosenbaum, Is the Holocaust Unique? Perspectives on Comparative Genocide, Boulder: Wetsview Press, 1996. [5]. Ver Jean-Pierre Vernant, Les Assassins de la Mémoire:”Um Eichmann de papier et autres essais sur le révisionnisme”, Paris: Editions La Découverte, 1987. Para um tratamento do negacionismo norte-americano a referência obrigatória é a do excelente livro de Deborah Lipstadt, Denying the Holocaust: The Growing Assault on Truth and Memory, New York: Plume, 1994. [6]. Cf. Robert Faurisson, Mémoire em défense: contre ceux que m ‘accusent de falsifier l´histoire, Paris: La Vieille Taupe, 1980, p. 90. Faurisson acrescentou ainda, em prefácio a outro livro negacionista (Le Mensonge d´Auschwitz, Paris: FANE, 1973), a seguinte justificativa: já que “a maioria dos judeus da França veio da Europa Oriental”, a assim chamada “Solução Final” não foi outra coisa do que seu repatriamento, da mesma maneira com a qual os franceses repatriaram os argelinos, em outubro de 1961 (p.8). [7]. Ver o abjeto livro de Butz, The Hoax of the Twentieth Century, Torrance: Noontide Press, 1979, pp. 245-248. Trata-se de uma das obras de referência para o negacionismo norte-americano. [8]. Ver Amos Filkenstein, “History, Counterhistory, and Narrative”, In: Saul Friedlander (Ed.), Probing the Limits of Representation: Nazism and Final Solution, Cambridge: Harvard University Press, 1992, pp. 66-81. [9]. Op. cit., p. 69. [10]. Cf. Heinrich Böll, “Enfance Exemplaire”, Les Temps Modernes 396-7, julho/agosto 1979, p. 241. [11]. Ver Saul Friedlander, Memory, History, and the Extermination of the Jews of Europe, Bloomington: Indiana University Press, 1993 p. 23. [12]. Apud Saul Friedlander, op. cit., p. 50. [13]. Shmuel Trigano, em excelente e corajoso livro, chama a atenção para modalidades mais sutis de anti-sionismo, caracterizadas pela reverência a Shoah e a suas vítimas imediatas como aspectos do passado, associadas a atitudes de hostilidade para com o Estado de Israel, e não apenas aos governos eventuais que o dirigem. Ver, Les Frontières d’Auschwitz, Paris: Le Livre de Poche, 2005. [14]. Ver Claude Lanzmann, “The Obscenity of Understanding: An Evening with Claude Lanzmann”, In: Cathy Carut (Ed.), Trauma: Explorations in Memory, Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1995, pp. 200-220. [15]. Ver, por exemplo, Maurice Halbwach, La Mémoire Collective (Paris: PUF, 1968) e Pierre Nora, Les Lieux de la Mémoire (Paris: PUF, 1984). [16]. Ver Amos Finkelstein, “Historical Consciousness”, History and Memory: Studies in Representation of the Past 1/1, 1989 [17]. Carta pessoal de Reinhard Koselleck a Saul Frielander, apud Saul Friendlander, op. cit. p. 57.

A vida dos outros

Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás do jornal "Estado de São Paulo", em 20 de junho de 2010)

Chappaquiddick entrou para os anais da história norte americana como símbolo das relações entre reputação pessoal e vida pública. O acidente automobilístico que envolveu, naquela localidade em 1969, Edward Kennedy e Mary Joe Kopechne – membro do staff eleitoral de seu irmão Robert, na campanha presidencial de 1968 - vitimando-a fatalmente, pelas suspeitas de extraconjugalidade e pela acusação de evasão do local do ocorrido, arruinou as chances eleitorais nas presidenciais de 1972 do então senador. A indicação democrata acabaria nas mãos de George McGovern. Massacrado por Richard Nixon, McGovern venceria apenas em Massachussets e no Distrito der Columbia. Conseguiu apenas macérrimos 17 votos no Colégio Eleitoral, contra 520 conferidos ao Tricky Dicky.

McGovern era um bom sujeito, um liberal americano das antigas. Sua platafor-ma incluía a imediata retirada dos americanos do Vietnam e a retomada, em grande, dos valores e políticas da Great Society, iniciada no governo Johnson. O interessante é que sua campanha foi negativamente afetada, para além de seu “radicalismo”, por um torpedo que atingiu a alma de seu candidato a vice – o senador Thomas Eagleton – “acusado” de maníaco depressivo e de saúde mental duvidosa. Ele teria sido, ainda, a fonte da informação, disseminada pela direita, de que McGovern pretendia a legalização das drogas e do aborto. Haja dossiers.

Em um período de poucos anos, as chances eleitorais de dois importantes políticos norte-americanos foram arruinadas por fatores ligados a condutas pessoais. No caso de Ted Kennedy, sua tentativa de retorno à corrida presidencial nos anos 80 foi impiedosamente marcada por alusões tais como: “ontem nevou em Chappaquiddick”. A simples declinação da toponímia, pela imprensa de direita, servia de passagem para uma aversão que escamoteava as razões políticas do veto, em incursão pura e dura pelo campo da moralidade. O pobre senador Eagleton retirou-se da política, na mesma década de 80, após “acusações” de bissexualismo.

Paro por aqui, mas essa história continua. Que o digam Clinton, nos anos 90, e, há pouco, um candidato derrotado às primárias democratas vencidas por Barack Obama, o senador John Edwards. Com certeza, há um muito de tudo a operar como fundamento dessas histórias: invenções, indícios e evidências. De resto, a vida não se espalha em compartimentos discretos e incomunicáveis, de uma forma tal que suposições ou evidências a respeito da moralidade pessoal não possam aparecer como componentes do nosso juízo político. Não é este o problema, mas sim o seguinte: o que ganhamos, em termos de politização e de qualidade de reflexão sobre a vida pública, se os nossos marcadores cognitivos são configurados, prioritária e exclusivamente, por impressões de natureza moral? Não se trata, digo logo, de promover um elogio da delinqüência ou um encorajamento à entrada de celerados na vida pública. A aversão a isto é sadia, tal como o demonstra o episódio Ficha Limpa. De passagem, é importante que se diga a respeito dele: trata-se menos de um avanço na qualidade da vida pública do que uma tentativa de interdição de que ela venha a piorar cada vez mais. Mas como a vida mede-se por grandezas relacionais, é natural que tomemos a segunda alternativa como sendo a primeira.

Assim como, segundo o Dr. Johnson, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, a afirmação – da própria – e a negação – da alheia - da honra pessoal, como formas privilegiadas de ação no mundo público, são o abismo da política. Nesse sentido, elas são um refúgio de republicidas. Nos EUA, o apelo à moralidade, e à reencenação de um contínuo potlatch da pureza, esteve sempre a serviço de causas reacionárias. Entre nós, a coisa é mais confusa e disseminada. A obsessão à repetição dos mecanismos sombrios que envolvem o termo “dossier” parece ser sintoma de uma cultura política assentada na desconfiança e na crença na eficácia da chantagem e da intimidação. No limite, não há conflito de natureza política, mas entre maquinações criminosas que procuram se apropriar da vida pública. Não nasci ontem e reconheço plausibilidade da suspeita. Por vezes, tenho mais do que suspeitas, mas isso não nos condena ao abismo da guerra moral.

Não foi por capricho que o filósofo político Thomas Hobbes, no não tão longínquo século XVII enumerou entre as condições necessárias para a paz civil uma regra que denominou como “anti-contumélia”, que dizia respeito a uma cláusula de não-difamação. Trata-se de afirmar a incompatibilidade entre a prática da difamação e a qualificação da vida pública. E é disto que se trata. Na última aparição, entre nós, dessa patologia, das duas uma: ou há difamadores que elaboraram um dossier, ou há difamadores que acusam inocentes por terem elaborado difamações. De qualquer forma, alguém está a difamar. Todos possuem boas razões para a desconfiança mútua.

Já não nos distinguimos pela faceta pública do que queremos e imaginamos, mas pelo que, com tal faceta, pretendemos esconder. Supomos que intenções inconfessáveis devem sempre estar presentes como configuradoras das motivações para a política. São elas, portanto, que devem ser exploradas, tanto como exigência de sentido quanto como forma de neutralização dos inimigos. Não deixa de haver, ainda, cinismo e curiosidade mórbida na coisa. Por mais odiosa que seja a prática dos dossiers, ela alimenta a curiosidade pública e define um padrão de informação a respeito da política. Em outros termos, autores aloprados de dossiers agem na suposição de que existem consumidores aloprados de dossiers, ávidos por informações a respeito do que verdadeiramente interessa: o caráter moral, o fundamento último da vida dos outros.

Da diferenciação racial

Renato Lessa
(Coluna "Sobre Humanos", da Revista Ciência Hoje, julho de 2010)
Ninguém há de duvidar que a demografia seja uma modalidade de conhecimento de extrema utilidade. Sem os seus métodos e procedimentos, jamais teríamos noções apropriadas a respeito da composição das populações. Disto não decorre que a leitura de um censo demográfico possa ser tomada como descrição adequada de uma experiência nacional. Tal experiência, para além de dimensões demográficas, inclui um incontável universo de crenças, valores e hábitos sociais. Algo que configura o que poderíamos designar como um patrimônio qualitativo, cujos contornos escapam à análise predominantemente quantitativa. Um censo demográfico, a despeito de sua importância indisputada, não dá a medida da imagem do que é o país, dos modos pelos quais ele se percebe nas representações que faz de si mesmo.

Parte fundamental do patrimônio qualitativo diz respeito aos modos pelos quais um conjunto de seres humanos imagina-se como integrante de um povo, mais do que de uma população. A idéia de povo é algo que se constitui, ao longo do tempo, por meio da fixação de imagens e crenças coletivas de pertencimento. Nem todos aderem ou são afetados por tais crenças coletivas. Alguns podem, mesmo, oscilar entre um forte estranhamento com relação á identidade nacional a qual supostamente pertencem e uma sensação oceânica de que dissolvem-se naturalmente em sua pátria. Tome-se o caso do escritor português Eça de Queirós que, quando de navio vinha de Bristol para Marselha, dizia Portugal ter um bom litoral para que nele se atirassem pedras. O que não lhe impediu a reconciliação com os hábitos e encantos de seu país, tal como expressos em seu magnífico livro As Cidades e as Serras.

Quando falamos em populações, é possível imaginar formas de pertencimento baseadas em dois critérios, a saber: (i) a vinculação a um demos comum, vinculado a um estado nacional, dotado de um marco jurídico-político comum ou (ii) a um ethnos, definido como um conjunto de pessoas que compartilham de identidades culturais, étnicas, lingüísticas, julgadas mais densas do que um mero vínculo abstrato e formal.

O primeiro critério apresenta-se, em regimes democráticos, sob a forma de uma cidadania que garante direitos e critérios de justiça cujo usufruto é comum. Políticas sociais, mesmo quando voltadas para segmentos específicos da população – mais pobres ou mais vulneráveis -, decorrem da idéia de um pertencimento cívico e social comum. O critério fundado na idéia de ethnos considera identidades compartilhadas e distintas de outras identidades, mesmo que submetidas formalmente a um mesmo estado. O exemplo corrente da Bélgica é significativo. Ali o próprio estado nacional corre o risco de desaparecer em função de uma distinção cultural funda entre valões e flamengos.

Não é impossível, contudo, a convivência entre os dois critérios de pertencimento. Identidades locais podem conviver com sentimentos de inclusão mais gerais. Tudo dependerá da presença e da capacidade de um ordenamento geral que garanta direitos e comuns e possa avançar na direção do reconhecimento de demandas e necessidades particulares a subconjuntos da população. Em termos gerais, toda experiência nacional reúne partes heterogêneas. A questão toda consiste em saber se tais partes aparecem combinadas e associadas ou em cenários de exclusão recíproca e distinção. A obsessão pela distinção, sobretudo quando fundada em marcadores raciais, implica o risco da erosão do pertencimento comum.

O Estatuto da Igualdade Racial, recentemente votado pelo Senado brasileiro, a despeito de seu nome, acaba por introduzir marcadores de distinção racial. Para evitar suspeitas de racialismo, ele substitui a expressão “desigualdade racial” por “desigualdade étnica”, em notação que agrava, em plano retórico, a percepção dos efeitos do racismo. É exatamente a crença na desigualdade étnica que constitui o combustível necessário para crenças etnocidas. No mais, o critério “étnico” – modo politicamente correto de se falar em “raça” – apresenta-se como compulsório para o ensino da história do país, para as políticas de saúde e de habitação.

Mais do que isso, o Estatuto, introduz no ordenamento jurídico do país o princípio da diferenciação racial, digo, “étnica”. Trata-se, por certo, de uma inovação. Agora, é ver que efeitos produzirá em nossas crenças de pertencimento.