domingo, 27 de junho de 2010

Da diferenciação racial

Renato Lessa
(Coluna "Sobre Humanos", da Revista Ciência Hoje, julho de 2010)
Ninguém há de duvidar que a demografia seja uma modalidade de conhecimento de extrema utilidade. Sem os seus métodos e procedimentos, jamais teríamos noções apropriadas a respeito da composição das populações. Disto não decorre que a leitura de um censo demográfico possa ser tomada como descrição adequada de uma experiência nacional. Tal experiência, para além de dimensões demográficas, inclui um incontável universo de crenças, valores e hábitos sociais. Algo que configura o que poderíamos designar como um patrimônio qualitativo, cujos contornos escapam à análise predominantemente quantitativa. Um censo demográfico, a despeito de sua importância indisputada, não dá a medida da imagem do que é o país, dos modos pelos quais ele se percebe nas representações que faz de si mesmo.

Parte fundamental do patrimônio qualitativo diz respeito aos modos pelos quais um conjunto de seres humanos imagina-se como integrante de um povo, mais do que de uma população. A idéia de povo é algo que se constitui, ao longo do tempo, por meio da fixação de imagens e crenças coletivas de pertencimento. Nem todos aderem ou são afetados por tais crenças coletivas. Alguns podem, mesmo, oscilar entre um forte estranhamento com relação á identidade nacional a qual supostamente pertencem e uma sensação oceânica de que dissolvem-se naturalmente em sua pátria. Tome-se o caso do escritor português Eça de Queirós que, quando de navio vinha de Bristol para Marselha, dizia Portugal ter um bom litoral para que nele se atirassem pedras. O que não lhe impediu a reconciliação com os hábitos e encantos de seu país, tal como expressos em seu magnífico livro As Cidades e as Serras.

Quando falamos em populações, é possível imaginar formas de pertencimento baseadas em dois critérios, a saber: (i) a vinculação a um demos comum, vinculado a um estado nacional, dotado de um marco jurídico-político comum ou (ii) a um ethnos, definido como um conjunto de pessoas que compartilham de identidades culturais, étnicas, lingüísticas, julgadas mais densas do que um mero vínculo abstrato e formal.

O primeiro critério apresenta-se, em regimes democráticos, sob a forma de uma cidadania que garante direitos e critérios de justiça cujo usufruto é comum. Políticas sociais, mesmo quando voltadas para segmentos específicos da população – mais pobres ou mais vulneráveis -, decorrem da idéia de um pertencimento cívico e social comum. O critério fundado na idéia de ethnos considera identidades compartilhadas e distintas de outras identidades, mesmo que submetidas formalmente a um mesmo estado. O exemplo corrente da Bélgica é significativo. Ali o próprio estado nacional corre o risco de desaparecer em função de uma distinção cultural funda entre valões e flamengos.

Não é impossível, contudo, a convivência entre os dois critérios de pertencimento. Identidades locais podem conviver com sentimentos de inclusão mais gerais. Tudo dependerá da presença e da capacidade de um ordenamento geral que garanta direitos e comuns e possa avançar na direção do reconhecimento de demandas e necessidades particulares a subconjuntos da população. Em termos gerais, toda experiência nacional reúne partes heterogêneas. A questão toda consiste em saber se tais partes aparecem combinadas e associadas ou em cenários de exclusão recíproca e distinção. A obsessão pela distinção, sobretudo quando fundada em marcadores raciais, implica o risco da erosão do pertencimento comum.

O Estatuto da Igualdade Racial, recentemente votado pelo Senado brasileiro, a despeito de seu nome, acaba por introduzir marcadores de distinção racial. Para evitar suspeitas de racialismo, ele substitui a expressão “desigualdade racial” por “desigualdade étnica”, em notação que agrava, em plano retórico, a percepção dos efeitos do racismo. É exatamente a crença na desigualdade étnica que constitui o combustível necessário para crenças etnocidas. No mais, o critério “étnico” – modo politicamente correto de se falar em “raça” – apresenta-se como compulsório para o ensino da história do país, para as políticas de saúde e de habitação.

Mais do que isso, o Estatuto, introduz no ordenamento jurídico do país o princípio da diferenciação racial, digo, “étnica”. Trata-se, por certo, de uma inovação. Agora, é ver que efeitos produzirá em nossas crenças de pertencimento.

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