quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Fragmentos da vida bolsonara: o que fazer com a bandeira bolsonarista?

 Fragmentos da vida bolsonara: O que fazer com a bandeira bolsonarista?

Renato Lessa


A extrema direita norte-americana possui uma bandeira para chamar de sua: a dos Confederados, os estados perdedores na Guerra da Secessão. Uma derrota que não impediu a proliferação de sua imagem maior, como cobertura simbólica para todo e qualquer reacionarismo futuro, naquelas plagas.

A extrema direita brasileira não possui bandeira própria. Adotou estratégia distinta: fez da bandeira de todos os brasileiros algo que a distingue como identidade política; fez da bandeira nacional a versão brasileira da bandeira dos confederados. Levou consigo o que, há tempos, chamávamos de “camisa da seleção brasileira”, hoje mero andrajo da impoluta CBF.

Os norte-americanos, de todos os quadrantes políticos, têm sua bandeira comum, a Stars and Stripes, encontrada nas varandas e jardins de casas republicanas, democratas e outras tantas. Para as contendas políticas, preferem a zoologia e servem-se de burros e elefantes. Bem melhor assim.

Entre nós, com a captura da bandeira nacional pela extrema direita, dissipa-se o pendão comum, e com ele a imagem do belo quadro de Pedro Bruno, “A Pátria”, de 1919, hoje no Palácio do Catete.

 


 

Há quem julgue ser de boa hora: tempo de desfazer a tenebrosa alucinação de ser um povo regulado pelos valores da disciplina (ordem) e da eficiência (progresso). Afinal, em que tugúrio ou calabouço esconderam a liberdade?  

Temos, na verdade, uma excelente alternativa que cala fundo em nossas melhores tradições. Por que não adotar a bandeira dos Inconfidentes? Por que não nacionalizar o pavilhão dos mineiros? O triângulo vermelho sobre a superfície branca evoca, além do mais, a linguagem concretista e de algumas de suas variações neo-concretistas, dois dos momentos mais férteis da arte brasileira do século que está a ser enterrado diante dos nossos olhos.  

Para não falar do lema: liberdade ainda que tarde; sempre tardia, mas sempre propiciadora. A camisa “amarelinha” passaria, então, a valer pelo que tem valido: uniforme cívico dos seguidores do Chefe e uma nova fatiota far-se-ia necessária, para o desespero dos torcedores do Grêmio, pois teria que seguir as cores da nova bandeira.

Admito que pensei, como alternativa, na bela bandeira dos paraibanos, igualmente moderna na forma, elegante nas cores e acompanhada da disposição insubmissa do termo “NEGO”. Nascido em 1954, sob o signo do bicampeonato rubro-negro carioca (1953-1954) - que viria a ser promovido no ano seguinte a tricampeonato -, temo que a coincidência das cores – Flamengo e Paraíba – torne minha defesa do pendão da esperança paraibano um tanto suspeita. Confesso que eu mesmo suspeitaria de mim, para dizer o mínimo. Prefiro, pois, a imparcialidade. Coisa que, no meu caso e em qualquer situação, sempre pendeu para os Inconfidentes.

 

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Sobre as ofensas de uma classe abastada

Renato Lessa

(Publicado no jornal O Globo, em 12/7/2020)

Com economia de adjetivos de fazer inveja a Graciliano Ramos, Jane Loureiro, da Vigilância Sanitária carioca, assim respondeu à indagação sobre o teor dos insultos recebidos de gente rompida com o restante da humanidade: “A maneira com a qual se ofende uma mulher”. Com dignidade sociológica, acrescentou: “Ofensas de uma classe abastada, que a gente acha que tem respeito e educação”. A ocasião: a reação iracunda de frequentadores de um bar, na Barra da Tijuca – núcleo impávido do bolsonarismo de raiz -, à ação da Vigilância, no zêlo das regras mínimas de proteção diante da pandemia. Gente que bem sabe como “se ofende uma mulher”.

Na mesma noite, Flavio Graça, superintendente da mesma Vigilância e no mesmo bairro, viu-se diante de dois exemplares do horror pátrio e pétreo a qualquer fumaça de igualdade: um casal indignado com tratamento dispensado, que envolveu o emprego da palavra “cidadão”. O apego atávico a marcas de distinção faz do termo uma imposição de rebaixamento. Cada um, afinal, deve ser chamado pelo que o distingue: daí o aceitável uso do termo “elemento” para os tidos por inferiores. O casal colérico exibiu sua distinção, mas no dia seguinte perdeu os empregos. Ao que parece, há lapsos de vigília no sono dos deuses.

 A frase de Jane Loureiro dá o que pensar. Em um de seus mais importantes poemas – A Flor e a Náusea, de 1945 – Carlos Drummond de Andrade inscreveu o seguinte verso: “Sob a pele das palavras há cifras e códigos”. Sob a epiderme da frase de Jane não há somente cifras e códigos, mas a exibição do abismo civilizatório no qual nos precipitamos sob o consulado inominável da extrema-direita.

Por certo, a vociferação de impropérios misóginos está inscrita na geologia dos nossos hábitos nacionais. Da mesma forma, lá estão a pequena e medíocre arrogância, a alucinação de superioridade e o direito autoconcedido de tomar satisfação dos discrepantes e inferiores. O que agora se acrescenta, é que todos possuem um Chefe e um exemplo, algo que lhes dá unidade e direção. Tornam-se, assim, operadores da obra de desconstrução dos filamentos civilizatórios mínimos que, mal ou bem, vínhamos acumulando.

 Fascismo? Necropolítica? Autoritarismo? Outro nome? Qual? Dar um nome é supor que há uma forma. E o bolsonarismo não tem forma alguma; não faz sistema; é pura obra de destruição; sequer merece um nome para chamar de seu. É constituído por práticas díspares, potências de degradação dos ambientes nos quais são engendradas. Obra que exige tanto iniciativas pelo alto quanto ações e comportamentos na base: negar água potável aos indígenas e humilhar fiscais sanitários; ofender uma mulher.

Cada um faz a sua parte: o Chefe e seus alegres acólitos, protagonistas de uma liberdade, enfim conquistada, de causar danos aos demais. E daí?

sábado, 30 de março de 2019

Duas ou três coisas que eu sei sobre ela: notas sobre um republicídio



Nota: O ensaio transcrito a seguir foi originalmente escrito quando o despautério de 31 de março de 1964 completava trinta anos, e foi publicado em diversas ocasiões. Muita coisa mudou, de lá para cá, menos a marca inerente de estupidez do evento, além do legado deletério que impôs  ao país.
O extremista que pretende nos governar tentou nos impor a vergonha de uma comemoração nos quartéis. Em tempo hábil, a coragem cívica de várias iniciativas individuais e coletivas encontrou na parte não reacionária do sistema de justiça brasileiro devida acolhida, e a provocação não teve livre curso.
Ainda assim, as autoridades militares emitiram nota alusiva ao evento de 1964, atenuando sua marca de origem e acenando com loas à democracia. Fizeram-no, contudo, sem alterar o principal: a crença de que as Forças Armadas podem intervir, a qualquer momento, para “corrigir” a história do país. Sua pretensa identidade com os “anseios dos brasileiros” confere-lhes, ao que parece, mandato permanente para tal. Tal crença esteve presente no núcleo do despautério de 31 de março de 1964 e, ao que tudo indica, está no meio de nós e deve ser, sem descanso, combatida.
Segue o ensaio.

Duas ou Três Coisas que Eu Sei Sobre Ela: notas sobre um republicídio
Nem ressentido, nem desmemoriado. Na tarde de 31 de março de 1964, parte da família dirigia-se a Jacarepaguá, em busca de alguma granja, para comprar ovos e aves. Desde sempre, ao que me lembre, foi assim: ao menor sinal de crise grave no país, minha mãe agia como a boa cunhada de Alexis de Tocqueville e diante da virtualidade do caos, pensava exclusivamente na saúde e na segurança dos seus e na integridade de sua despensa. Ao volante, meu pai, professor da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, a gloriosa Fenefi. O mais pacífico e inofensivo dos comunistas, prestes a ingressar na lista negra do famigerado Eremildo Luis Vianna, espécie de vilão e ente maligno que assolou o fim da minha infância. Ao meu lado, no banco de trás, minha jovem tia, militante do não menos glorioso CACO (Centro Acadêmico Candido de Oliveira), da Faculdade Nacional de Direito, invejando, com certeza, meus tios, a postos na Cinelândia, a apedrejar tanques. Na volta, pela Tijuca, chuvas de papel picado, lençóis brancos nas janelas, crucifixos e gritos histéricos e agressivos de “viva Lacerda” e “fogo na canalha comunista” indicavam que havíamos perdido.
Na manhã do dia 1o de abril de 1964, na esquina da Rua Joaquim Nabuco com a Av. Atlântica, no então bucólico Posto 6, um coronel do Exército salta de um Citroën preto e caminha em direção ao sentinela que guardava a entrada do Forte Copacabana. A bofetada no rosto do praça, transmitida ao vivo pela saudosa TV Rio, eliminou um dos supostos focos de apoio ao Presidente João Goulart, a essa altura politicamente desenganado. Carlos Heitor Cony, em crônica memorável publicada no dia seguinte, lembra ainda a preocupação do referido oficial em pôr dois paralelepípedos no meio da então única pista da Av. Atlântica: “precisamos parar os tanques do I Exército!” O I Exército não apareceu. Na verdade, ele reuniu-se aos demais Exércitos e à Marinha e à Aeronáutica para iniciar o experimento que pôs fim à República de 1946. Os paralelepípedos, inúteis, foram separados pelo próprio Cony, sem qualquer esforço, em um leve movimento com a ponta do pé.
Mas, ao contrário dos paralelepípedos de Cony, duros e objetivos como a verdade deve ser, os acontecimentos de 1964 estão sujeitos à dissipação e à plasticidade. Lembrá-los hoje significa transitar por um insolúvel conflito de interpretações.
A chamada revolução de 1964 possui muitos significados, atribuídos por uma legião de cientistas sociais e intérpretes. Meu próprio treinamento profissional, nesse caso, não tornaria absurdo propor ou enfatizar alguma dessas visões ou sugerir qualquer bricolage.
Há, por exemplo, quem lhe negue o rótulo oficial de “revolução” e lhe rebaixe à abjeta categoria de “golpe”, gênero propício, segundo notação de Paulo Mercadante, a respeito da proclamação de 1889, ao surgimento de “energúmenos, fantoches e burocratas”. Mas, trata- se a meu juízo de pouco heróica e ineficaz vingança dos conceitos contra os vencedores na vida real. Golpe ou revolução, não importa. Falar de 1964 é dizer do meu ingresso na vida política adulta, pelas mãos do medo. Que o leitor perdoe o que poderá julgar como excesso de idiossincrasia. Aqui, imagino tão somente seguir um ensinamento de Max Weber: na impossibilidade de erradicar nossos valores, preferências e, acrescento eu, taras, torná-los explícitos para que sejam controlados por juízos externos.
Tão certo quanto isso é o fato de que para além da memória e do trauma, os eventos históricos são permanentes, posto que decantam na vida comum, para além dos delírios da subjetividade. Sendo assim, devem ser submetidos a procedimentos básicos de datação. Ainda não será dessa vez que nos livraremos da imprecisão, já que não dispomos de qualquer equivalente, nesse caso, ao carbono 14, ele mesmo muito impreciso. A datação e o sentido dos fenômenos históricos dependem de um ato tão crucial quanto arbitrário, qual seja o de definir os limites temporais dos eventos a considerar: em que momento começam; quando cessam de produzir efeitos relevantes. Os acontecimentos que, em 1964, erradicaram a democracia política em nosso país estão também sujeitos a essa plasticidade do tempo. Quando começaram? Que ordem de coisas, genealogia ou causa remota devem ser evocados? Thomas Mann, em José e seus Irmãos, já nos advertia de quão “fundo é o poço do passado”. Até onde, portanto, devemos retroceder?
Há quem julgue que para entender o republicídio de 1964, devemos proceder à uma dissecação ou arqueologia do comportamento militar no Brasil. Os militares que lideraram a aventura de 1964 são, nessa chave, dotados de uma vetusta ancestralidade: seus sinais estão bem ali, nos egressos da Guerra do Paraguai, que protagonizam a Questão Militar e uma atitude salvacionista; no difuso e tropical positivismo do início da República, no movimento dos tenentes, na década de 20, no envolvimento com a modernização autoritária e com o anti-comunismo dos anos 30 e 40, etc... A homenagem genética cria, retrospectivamente, uma fatalidade histórica, algo assemelhado à natureza, domínio por definição inerradicável e invencível. A transformação do “componente militar” em algo assemelhado ao mundo natural vem, com freqüência, associado a uma perspectiva conspiratória. Por essa pista, entender 1964 significa reconstituir exaustivamente toda a trama de conspirações, já que a ordem do histórico é a ponta aparente de maquinações urdidas em segredo. Assim, mentes simplórias, exemplares paradigmáticos da mediocridade nacional, nulidades lombrosianas e ressentidos em geral acabam sendo agraciados com a prerrogativa do protagonismo. Suas truculências e exercícios mentais tacanhos passam a ser abrigados por um gênero literário nobre: o das memórias e depoimentos, espécies brasileiras de “lavagem de biografia”.
Outra perspectiva, com muito maior plausibilidade, concedo com prazer, percebe os mesmos acontecimentos como produzidos pela dinâmica da política, circunscrita ao momento específico da primeira metade dos anos sessenta. O desfecho, nesse caso, nada deve à fatalidade, mas ao resultado produzido pela dinâmica do próprio conflito político. Isso equivale a dizer que outros desfechos para a crise de 1964 eram possíveis e que o seu resultado foi contemporâneo de si mesmo.
Passados quarenta anos do republicídio de 1964, estamos longe de algo assemelhado a um consenso a respeito dos seus significados (na verdade, porque haveríamos de estar perto?). Ainda que tenha simpatias claras e aversões fortes, diante do conflito das interpretações a respeito de 1964, não pretendo refutar nenhuma delas em particular. Pretendo proceder à moda de alguns historiadores do Holocausto que, diante da variedade de interpretações, da presença de um certo relativismo e da criminosa tentativa de negação do que ocorreu, pretendem fornecer uma narrativa básica, sobre a qual ênfases e leituras diferentes podem ser propostas. Nesse sentido, talvez um pouco ingênuo, sustento que uma narrativa básica sobre os eventos de 1964, e a experiência histórica deles resultante, deve destacar dois aspectos centrais:
1. O movimento de 1964 foi um evento republicida.
2. O experimento civilizatório dele decorrente foi marcado pela erosão da malha de 
proteção política e institucional da sociedade, cujo resultado foi a combinação perversa entre rápida transformação social e virtual ausência de mecanismos intitucionais de representação e participação políticas.
O caráter republicida pode ser atestado se lembramos da “República que a revolução destruiu”, para usar o mote de Sertório de Castro. O Brasil, em 1946, de modo efetivo “proclamou” a República. Explico: trata-se da nossa primeira experiência de eleitorado de massa, eleições e sistema partidário competitivos, rotinização de um sistema representativo consistente e pluralista, federalismo, diversidade política regional, etc... Ainda que um certo preconceito oligárquico e elitista tenha imposto à República de 1946 o rótulo de “populista”, julgo ser uma violência nela não reconhecer o nosso primeiro experimento democrático. Seu principal pecado foi não sê-lo de modo mais completo, já que os comunistas foram privados da legalidade em 1947 e os analfabetos não faziam parte do corpo eleitoral. O movimento de 1964, em poucos anos, elimina a principal característica e virtualidade da república de 1946: a da possibilidade da representação política de parte importante do país, em sua diversidade e complexidade. Isso se deu graças à extinção dos partidos do regime de 1946, a erradicação de parte importante da classe política e a drástica redução do peso do voto popular no sistema decisório.
A descrição da bestialogia e da truculência do regime de 1964 já está feita. Basta ouvir as vozes, e ler nos corpos e nas narrativas dos que exerceram oposição nesse país, que nesses lugares será encontrada essa parte da história. Aqui o que quero destacar é a terrível experiência mais geral de uma sociedade que em vinte anos é submetida à inédita combinação entre modernização econômica vertiginosa, deslocamentos espaciais, predação ambiental, dilaceração de identidades, urbanização e desconsideração completa de custos humanos e sociais, na busca dos chamados “interesses nacionais”. E aqui entro no segundo tópico da narrativa básica, a que aludi. O que a experiência civilizatória de 64 impõe ao país é o predomínio puro da esfera econômica sobre a vida social, sustentada em doses fortes de autoritarismo e estupidez. A política, pela coação e pela pusilanimidade, foi posta a serviço dessa razão de estado obcecada pela modernização econômica. É claro que, em princípio, não há nada de errado com a modernização. O problema todo ocorre quando a sociedade não tem à sua disposição formas de expressão e representação política. Os meios disponíveis para tal foram eliminados pelo republicídio de 1964. Em outras palavras, o país experimentou uma perversa combinação: crescimento a qualquer custo e ausência de democracia política.
As bases doutrinárias da precedência da razão econômica sobre a democracia política já estavam postas nos anos cinquenta, em pensadores díspares, tais como Celso Furtado e Roberto Campos. Trata-se da linguagem dos “obstáculos políticos ao desenvolvimento”. Esses obstáculos são, em geral, os da democracia, odiosa forma de governo - melhor apenas do que todas as demais - que impõe um ritmo lento para a deliberação pública e é capaz de abrigar tanto biltres como pessoas decentes. O argumento anti-democrático foi admiravelmente reconstituído por Roberto Campos, em 1974, quando apresenta o experimento de 1964 como um “autoritarismo consentido”(sic), caracterizado, entre outras coisas, pela adesão “inconsciente ou subconsciente” da população por um padrão de maior “disciplina social”, em detrimento da “exaltação democrática”. É reconfortante aqui lembrar dos resultados eleitorais de novembro de 1974, a primeira derrota eleitoral do regime de 1964, em escala quase nacional, e que demonstra a ilusão do consenso sustentado por Roberto Campos. Mas, cético que sou, sei que superstições não são refutadas por fatos. E essa foi a superstição que sustentou o regime de 1964: a de que a política democrática é inimiga da disciplina social e do progresso e de que um dos principais agentes de irracionalidade política no país é o Poder Legislativo.
O legado de 1964? Bem, um dos legados está contido em um singular absurdo. O regime, com seu conhecido apreço por eleições e por instituições democráticas, seguiu emitindo títulos de eleitores. Com efeito, o eleitorado brasileiro entre 1966 e 1986, saltou de 22.387.251 para 69.166.810 eleitores, um acréscimo de mais de 200%. Desconheço outro eleitorado no planeta que tenha tido crescimento semelhante, em contexto de ausência de democracia política. Mas, talvez o principal legado seja o do predomínio de um economiscismo difuso e de uma desvalorização generalizada da política e das instituições. Afinal, passados tantos anos, a linguagem do imperativo da modernização econômica e dos obstáculos políticos e institucionais ao desenvolvimento está viva. Viva e a erodir as expectativas e apostas simples de mulheres e homens igualmente simples desse país. Nesse sentido, o regime de 1964 é um experimento vitorioso e tem suas superstições cuidadosamente mantidas por essa coalizão entre derrotados e vitoriosos de 1964, que tem nos governado.
O saudoso Francisco Iglesias, escrevendo no ocaso do regime militar, há cerca de 15 anos atrás, sintetizou com elegância e economia o legado do experimento 1964: “Nele, a liberdade conheceu um de seus mais longos e tenebrosos eclipses. A negação da democracia, constante na trajetória brasileira, tem então forma agressiva, ainda não conhecida. Muita gente sofreu, foi exilada, torturada, morta. O Brasil cruento teve a expressão máxima”. Por fim, a profecia, ainda não cumprida: “O povo saberá sair do atoleiro por suas próprias mãos, repondo a pátria no seu caminho de onde a tirou a má vontade ou a falsa compreensão do Brasil”.
Ainda que não tenha ânimo suficiente para profecias, tenho a convicção contrafactual de que o Brasil pós 64, sem 64, teria sido melhor do que o que foi inventado com 64. Esse acidente infeliz deixou marcas indeléveis na história do país. Quanto à minha, devo dizer que aos revolucionários de 1964 devo o fim da minha infância e o usufruto precoce do medo e das esperanças dos adultos.


sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Há futuro para a democracia no Brasil?

(Publicado no semanário "Expresso", Lisboa, em 12/10/2018)

Renato Lessa


Definidos os resultados do primeiro turno das eleições brasileiras, as primeiras sondagens indicam vantagem nítida do candidato da extrema-direita – Jair Bolsonaro - com relação ao da centro-esquerda – Fernando Haddad. A sondagem do Instituto Data Folha, divulgada na última quarta-feira diz que o primeiro contaria com 58% das intenções de voto, e o segundo com 42%. Haddad teve 29% dos votos válidos no primeiro turno; com a marca indicada na sondagem, parece ter incorporado um contingente eleitoral potencial de 13% dos votos válidos, marca idêntica à obtida por Ciro Gomes, também do campo da centro-esquerda e terceiro colocado nas eleições de domingo passado.

Os eleitores de Marina da Silva, que começara a campanha eleitoral com mais de 20% das indicações de voto, reduziram-se a 1% dos votos válidos no primeiro turno, o que leva e crer que com a polarização entre os dois primeiros colocados, seus votos originais tenham sido transferidos; é mais razoável supor que tenham sido dirigidos em maior quantidade a Bolsonaro. Marina tem nesta altura pouco ou nada a transferir, mesmo porque declarou-se neutra para o turno final. 

Os votos obtidos pelo PSOL - Partido Socialismo e Liberdade – somaram menos de 0,6%, o que faz com que o apoio de seu candidato – Guilherme Boulos – a Haddad possa ter o condão de transferir mais a rejeição que possuía do que ativos eleitorais.Os demais partidos que disputaram o primeiro turno, todos no campo da centro-direita, amealharam, em conjunto, cerca de 10%. É a transferência desse volume que aparece na sondagem, com a subida do capitão 12%. 

A crer na sondagem mencionada, a partilha das intenções de voto espelha de modo direto a distribuição dos votos reais conferidos no primeiro turno.Diante do quadro, quais seriam então as chances de Fernando Haddad ser eleito? 

Há apenas dois caminhos possíveis e óbvios: converter votos dados à extrema-direita e atrair os eleitores que optaram por voto em branco e nulo, além de parte do contingente dos que se abstiveram. Tal universo corresponde a cerca de 40% do eleitorado brasileiro. Parte do contingente corresponde a eleitores de baixas renda e escolaridade, um universo no qual Haddad possui vantagem expressiva.

As possibilidades de reversão de votos é mais remota. O núcleo duro e incondicional dos eleitores do capitão parece ser indevassável. Formam, com efeito, algo assemelhado à ideia de “massa fechada”, sugerida por Elias Canetti em seu clássico livro Massa e Poder. Constituem um país a parte, dotado de linguagem própria e circuitos de informação rigorosamente endogénicos e autossuficientes. Compõem um caldo cultural avesso a mediações e abstrações, e adepto da ação direta e de uma cultura política de atrição. A necessidade de erradicação de tudo que sabe a PT, para tais adeptos, é cláusula pétrea. Inútil imaginar conversões em tal contingente.

Resta saber se há adeptos do capitão sensíveis a apelos eleitorais de ordem mais abstrata. Este na verdade, sempre foi um dos pontos vulneráveis do processo civilizador: obter um padrão de sociabilidade regulado por abstrações – isto é, leis, imperativos e valores – com o correspondente rechaço de culturas de ação direta, fundadas no atrito e na violência. No caso em questão, trata-se de apelos à manutenção da democracia, dos direitos humanos, da incolumidade das minorias e do respeito à Constituição.

A lógica simbólica do campo adversário a isto opõe o que seria a dura materialidade da criminalidade e da corrupção. Uma reversão dos moderados, atraídos pelo campo da extrema direita, dependeria da manifestação pública e inequívoca por parte gente localizada no centro do espectro político.  Para tal, seria necessário um redesenho dos termos do conflito: não mais um prélio eleitoral entre dois partidos, mas um processo galopante de crise que põe em risco o quadro democrático, com a clara indicação da origem da ameaça. Até o momento, há quem concorde que os perigos são reais, mas insistem na indiferenciação entre os candidatos, como se ambos fossem portadores da mesma escala de riscos.

Em termos concretos, a retração do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso nesse processo é espantosa. O candidato da extrema direita, em meio à defesa da necessidade de extermínio físico de inimigos, nomeou expressamente o ex-Presidente como merecedor de fuzilamento. Por mais que tenha sido criticado – por vezes com alguma injustiça, devo dizer – pela oposição a ele dirigida pelo PT, nada de semelhante foi-lhe dito. Fernando Henrique possuía até há pouco relações de respeito com Lula, além de incluir em seu círculo de amigos gente à esquerda. Sua indiferença – semelhante a de um adepto do FCP a assistir a um Dérbi da Capital – não deixará incólume sua dignidade pública.

A candidatura de Fernando Haddad excede a moldura de uma campanha eleitoral com vistas à conquista da Presidência da República. Talvez seja ela a última barreira possível que o país dispõe, no tempo imediato, para conter o acelerado processo de desconstrução civilizatória em curso. A ele impõe-se a necessidade de tornar crível sua capacidade de liderar uma coalizão democrática, que, se bem sucedida, excederá o seu próprio partido. Haddad possui os valores e as convicções necessárias para tal, mas terá que abandonar atavismos sectários bem nutridos pela nomenclatura petista, tais como a defesa do assim chamado “socialismo bolivariano” que, ademais, é absolutamente inconsequente.

O caminho a perseguir parece estar longe de ser auspicioso. A Haddad é exigida uma autocrítica, como se isso não se aplicasse a seu oponente, defensor notório de torturadores. Trata-se, na verdade, de uma terrível e kafkiana assimetria das exigências: para que vença é imperativo que Haddad diga a “verdade”, e faça mea culpa a respeito das práticas heterodoxas de membros de seu partido; para que o capitão vença, basta que siga com as simplificações, os estereótipos e as ameaças usuais. Os liberais exigem a total contrição haddadiana, ao mesmo tempo em que são indulgentes com as alarvidades ditas e cometidas pelo campeão da extrema-direita.

De qualquer modo, a coalizão democrática possível deverá exceder o tempo das eleições. Impõe-se, neste sentido, que se constitua como eixo de sustentação de um governo Haddad. No entanto, é mais provável – e infinitamente mais importante – que possa se configurar como eixo da resistência democrática ao despautério que começa a tombar sobre o país. A ver vamos.   

[1]. Filósofo político, Professor Associado da PUC-Rio e Investigador Associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Dureza dos tempos, horror à abstração

(Publicado no jornal "Expresso", Lisboa, em 5/10/2018)

Renato Lessa

Nos tempos idos da ditadura militar que se abateu sobre o Brasil, entre 1964 e 1985, habituamo-nos a memorizar os nomes dos componentes dos comandos castrenses. É que a seletividade da atenção dos humanos é sempre afetada pela saliência do que a eles se impõe como relevante: parece mesmo ser regra de bom senso saber dos nomes daqueles a quem devemos temer. Assim, transformamo-nos em leitores compulsórios do “Boletim do Exército”, em dura experiência com o lado, digamos, rústico da prática do idioma português. Mudanças nos comandos mais importantes valiam como sinais cabalísticos para elucidar o significado sempre fugidio das coisas: ler, no nome e na fisionomia dos generais promovidos, os desenhos dos futuros possíveis que nos aguardavam.

E havia mesmo tipos teratológicos. Lembro-me bem de um general, cuja estatura era inversamente proporcional à crueldade que emanava de seu semblante. Era conhecido pelos colegas de ofício como “Caveirinha”, e do alto de seu pouco mais de metro e meio, devo dizer, era mesmo mau como as cobras. Havia muitos outros comparáveis em escala de assombro, outros nem tanto, cuja eminência eventual indicava, segundo os mais crédulos, sinais de que a coisa se amainava.

Com o fim da ditadura, o princípio da atenção seletiva dirigiu-nos para outros sítios. E assim viemos. Com a Constituição de 1988, que fez do sistema de justiça – juízes e ministério público – os fiadores maiores dos direitos ali inscritos, passamos a memorizar nomes de juízes que compõem as cortes judiciárias. Hoje é mais fácil declinar os nomes dos componentes do Supremo Tribunal Federal, do que os dos 11 membros da equipa nacional de futebol.

O filósofo norte-americano Nelson Goodman disse em certa altura que nossa capacidade de não ver as coisas é infinita. É que passamos a vida, por irresistível inclinação antropológica, a construir e pintar mundos para nós mesmos. Não é necessário que nos convertamos em positivistas ultramontanos para reconhecer que, para além dos mecanismos simbólicos e dos quadros de expectativas construídos, há um mundo lá fora, cuja desagradável insistência em existir opera como contraponto ao animo imaginário. Pois bem, tudo isto para dizer que, a despeito da “reinvenção democrática”, o mundo militar subsistiu entre nós, intocado em sua substância, mesmo que não saibamos seus nomes.

A retração e invisibilidade do estamento militar, por comparação à sobre eminência anterior, foi não raro tomada como índice de aquiescência à ordem constitucional. Tratar-se-ia, se fosse este o caso, de mutação de não pequena monta: aceitar tal subordinação à Constituição exige, por maioria de razão,  abandonar a posição de poder constituinte originário, ocupada pelo estamento desde os idos de 1964. Não que não houvesse sinais visíveis de ativismo, procedentes da suposta invisibilidade: já na altura dos debates a respeito da nova Constituição -  em 1987 e 1988 – os militares fizeram ouvir suas exigências. A mais importante está contida no que veio a ser o artigo 142 da Constituição, que atribui às Forças Armadas o papel de guardiães da “lei e da ordem”, para cuja defesa podem ser mobilizadas pelos poderes constituídos.

Os apaziguadores entre nós apegaram-se ao elemento restritivo contido na ressalva de que a mobilização militar deverá decorrer de solicitação dos poderes da República. O fato é que a ressalva é precedida da norma geral que concede às Forças Armadas o papel de garantia da ordem. E como sempre é o caso diante de máximas gerais, o que importa é saber quem decide a respeito do caso particular, como bem ensinava o Dr. Carl Schmitt.

Com os tempos que correm, voltamos nossa atenção a nomes militares. Para já, temos o candidato da extrema-direita, o capitão Jair Bolsonaro, versão militarizada do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte. O capitão é um veterano da política. Deputado federal há 28 anos, perfilou-se invariavelmente com o baixo clero da política brasileira, e fez-se notável pela defesa do regime militar, do uso da tortura e de ameaças a inimigos. O núcleo duro de sua trajetória pode ser assim resumido: a promoção de uma cultura de violência no âmbito da política, complementar à crescente demonização da atividade política, ocorrida entre nós, sempre associada à recusa do valor de qualquer mediação. A isto se soma a correspondente valorização da ação direta. Bolsonaro é “espontâneo”, tal como o são Salvini e Dutarte.

O personagem, do ponto de vista clínico, não é desinteressante. Exibe uma combinação didática entre uma forte homofilia e homoafetividade com manifestações furiosas de homofobia. Suas aparições públicas mostram-no invariavelmente acompanhado de homens rudes, com bíceps avantajados e semblantes de poucos amigos. Não há mulheres presentes. Seus aliados e parceiros são apresentados como “namorados. Curiosa criatura, caso clínico notável para aulas introdutórias a respeito do tema do recalque. Fascínio pelos músculos másculos e horror à abstração.

Seu companheiro de “chapa”, o general Antonio Mourão encarregou-se do núcleo, digamos, doutrinário da campanha. Sua premissa maior apresenta os brasileiros como um amálgama infeliz: o “amor dos portugueses ao privilégio, a indolência dos indígenas e a malandragem dos negros”(sic). Um pessimismo antropológico profundo emerge, em sucessão imparável de atos falhados. Como bem sabemos, atos falhados não mentem e correspondem, se calhar, ao que mais possuímos de genuíno. Neste caso, os atos estão a indicar que precisamos ser salvos de nós mesmos, de nossos defeitos constitutivos, acompanhados de altruística indicação do terapeuta.

Dois cenários apresentam-se para o Brasil. A possível vitória eleitoral da extrema direita trará para o proscênio o componente militar. Não sabemos, por certo, a extensão dessa expansão e, se calhar, nem mesmo os animadores da perspectiva o sabem. O que é certo é que o país se abrirá para uma combinatória perversa entre ultraliberalismo econômico e autoritarismo político. A possível vitória da centro-esquerda – com Fernando Haddad -, para além dos dilemas específicos de seu próprio campo, ver-se-á diante de um problema de imensa magnitude: o candidato derrotado da extrema direita não reconhecerá sua derrota e incitará clamor público pela revisão do resultado.

Um golpe de dados não abolirá o acaso. Sempre se pode contar com o facto de que os humanos não são animais prescientes.  Os que pretendem mergulhar o país na aventura extra-constitucional não controlam, por definição, os enredos decorrentes possíveis. Não estamos condenados de antemão a voltar a consultar o “Boletim do Exército”. 


[1]. Professor Associado de Filosofia Política da PUC-Rio e Investigador Associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.