Há futuro para a democracia no Brasil?
(Publicado no semanário "Expresso", Lisboa, em 12/10/2018)
Renato Lessa
Definidos os resultados do primeiro turno das eleições
brasileiras, as primeiras sondagens indicam vantagem nítida do candidato da
extrema-direita – Jair Bolsonaro - com relação ao da centro-esquerda – Fernando
Haddad. A sondagem do Instituto Data Folha, divulgada na última quarta-feira
diz que o primeiro contaria com 58% das intenções de voto, e o segundo com 42%.
Haddad teve 29% dos votos válidos no primeiro turno; com a
marca indicada na sondagem, parece ter incorporado um contingente eleitoral
potencial de 13% dos votos válidos, marca idêntica à obtida por Ciro Gomes,
também do campo da centro-esquerda e terceiro colocado nas eleições de domingo
passado.
Os eleitores de Marina da Silva, que começara a campanha
eleitoral com mais de 20% das indicações de voto, reduziram-se a 1% dos votos
válidos no primeiro turno, o que leva e crer que com a polarização entre os
dois primeiros colocados, seus votos originais tenham sido transferidos; é mais
razoável supor que tenham sido dirigidos em maior quantidade a Bolsonaro.
Marina tem nesta altura pouco ou nada a transferir, mesmo porque declarou-se
neutra para o turno final.
Os votos obtidos pelo PSOL - Partido Socialismo e
Liberdade – somaram menos de 0,6%, o que faz com que o apoio de seu candidato –
Guilherme Boulos – a Haddad possa ter o condão de transferir mais a rejeição
que possuía do que ativos eleitorais.Os demais partidos que disputaram o primeiro turno, todos
no campo da centro-direita, amealharam, em conjunto, cerca de 10%. É a
transferência desse volume que aparece na sondagem, com a subida do capitão 12%.
A crer na sondagem mencionada, a partilha das intenções de voto espelha de modo
direto a distribuição dos votos reais conferidos no primeiro turno.Diante do quadro, quais seriam então as chances de
Fernando Haddad ser eleito?
Há apenas dois caminhos possíveis e óbvios:
converter votos dados à extrema-direita e atrair os eleitores que optaram por
voto em branco e nulo, além de parte do contingente dos que se abstiveram. Tal
universo corresponde a cerca de 40% do eleitorado brasileiro. Parte do
contingente corresponde a eleitores de baixas renda e escolaridade, um universo
no qual Haddad possui vantagem expressiva.
As possibilidades de reversão de votos é mais remota. O
núcleo duro e incondicional dos eleitores do capitão parece ser indevassável.
Formam, com efeito, algo assemelhado à ideia de “massa fechada”, sugerida por
Elias Canetti em seu clássico livro Massa
e Poder. Constituem um país a parte, dotado de linguagem própria e
circuitos de informação rigorosamente endogénicos e autossuficientes. Compõem
um caldo cultural avesso a mediações e abstrações, e adepto da ação direta e de
uma cultura política de atrição. A necessidade de erradicação de tudo que sabe
a PT, para tais adeptos, é cláusula pétrea. Inútil imaginar conversões em tal
contingente.
Resta saber se há adeptos do capitão sensíveis a apelos
eleitorais de ordem mais abstrata. Este na verdade, sempre foi um dos pontos
vulneráveis do processo civilizador: obter um padrão de sociabilidade regulado
por abstrações – isto é, leis, imperativos e valores – com o correspondente
rechaço de culturas de ação direta, fundadas no atrito e na violência. No caso
em questão, trata-se de apelos à manutenção da democracia, dos direitos
humanos, da incolumidade das minorias e do respeito à Constituição.
A lógica simbólica do campo adversário a isto opõe o que
seria a dura materialidade da criminalidade e da corrupção. Uma reversão dos
moderados, atraídos pelo campo da extrema direita, dependeria da manifestação
pública e inequívoca por parte gente localizada no centro do espectro político.
Para tal, seria necessário um redesenho
dos termos do conflito: não mais um prélio eleitoral entre dois partidos, mas
um processo galopante de crise que põe em risco o quadro democrático, com a
clara indicação da origem da ameaça. Até o momento, há quem concorde que os perigos
são reais, mas insistem na indiferenciação entre os candidatos, como se ambos
fossem portadores da mesma escala de riscos.
Em termos concretos, a retração do ex-Presidente Fernando
Henrique Cardoso nesse processo é espantosa. O candidato da extrema direita, em
meio à defesa da necessidade de extermínio físico de inimigos, nomeou
expressamente o ex-Presidente como merecedor de fuzilamento. Por mais que tenha
sido criticado – por vezes com alguma injustiça, devo dizer – pela oposição a
ele dirigida pelo PT, nada de semelhante foi-lhe dito. Fernando Henrique
possuía até há pouco relações de respeito com Lula, além de incluir em seu
círculo de amigos gente à esquerda. Sua indiferença – semelhante a de um adepto
do FCP a assistir a um Dérbi da Capital – não deixará incólume sua dignidade
pública.
A candidatura de Fernando Haddad excede a moldura de uma
campanha eleitoral com vistas à conquista da Presidência da República. Talvez
seja ela a última barreira possível que o país dispõe, no tempo imediato, para conter
o acelerado processo de desconstrução civilizatória em curso. A ele impõe-se a
necessidade de tornar crível sua capacidade de liderar uma coalizão
democrática, que, se bem sucedida, excederá o seu próprio partido. Haddad
possui os valores e as convicções necessárias para tal, mas terá que abandonar
atavismos sectários bem nutridos pela nomenclatura petista, tais como a defesa
do assim chamado “socialismo bolivariano” que, ademais, é absolutamente
inconsequente.
O caminho a perseguir parece estar longe de ser
auspicioso. A Haddad é exigida uma autocrítica, como se isso não se aplicasse a
seu oponente, defensor notório de torturadores. Trata-se, na verdade, de uma
terrível e kafkiana assimetria das exigências: para que vença é imperativo que Haddad
diga a “verdade”, e faça mea culpa a
respeito das práticas heterodoxas de membros de seu partido; para que o capitão
vença, basta que siga com as simplificações, os estereótipos e as ameaças
usuais. Os liberais exigem a total contrição haddadiana, ao mesmo tempo em que
são indulgentes com as alarvidades ditas e cometidas pelo campeão da extrema-direita.
De qualquer modo, a coalizão democrática possível deverá
exceder o tempo das eleições. Impõe-se, neste sentido, que se constitua como
eixo de sustentação de um governo Haddad. No entanto, é mais provável – e
infinitamente mais importante – que possa se configurar como eixo da
resistência democrática ao despautério que começa a tombar sobre o país. A ver
vamos.
. Filósofo político,
Professor Associado da PUC-Rio e Investigador Associado do Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
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