sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Há futuro para a democracia no Brasil?

(Publicado no semanário "Expresso", Lisboa, em 12/10/2018)

Renato Lessa


Definidos os resultados do primeiro turno das eleições brasileiras, as primeiras sondagens indicam vantagem nítida do candidato da extrema-direita – Jair Bolsonaro - com relação ao da centro-esquerda – Fernando Haddad. A sondagem do Instituto Data Folha, divulgada na última quarta-feira diz que o primeiro contaria com 58% das intenções de voto, e o segundo com 42%. Haddad teve 29% dos votos válidos no primeiro turno; com a marca indicada na sondagem, parece ter incorporado um contingente eleitoral potencial de 13% dos votos válidos, marca idêntica à obtida por Ciro Gomes, também do campo da centro-esquerda e terceiro colocado nas eleições de domingo passado.

Os eleitores de Marina da Silva, que começara a campanha eleitoral com mais de 20% das indicações de voto, reduziram-se a 1% dos votos válidos no primeiro turno, o que leva e crer que com a polarização entre os dois primeiros colocados, seus votos originais tenham sido transferidos; é mais razoável supor que tenham sido dirigidos em maior quantidade a Bolsonaro. Marina tem nesta altura pouco ou nada a transferir, mesmo porque declarou-se neutra para o turno final. 

Os votos obtidos pelo PSOL - Partido Socialismo e Liberdade – somaram menos de 0,6%, o que faz com que o apoio de seu candidato – Guilherme Boulos – a Haddad possa ter o condão de transferir mais a rejeição que possuía do que ativos eleitorais.Os demais partidos que disputaram o primeiro turno, todos no campo da centro-direita, amealharam, em conjunto, cerca de 10%. É a transferência desse volume que aparece na sondagem, com a subida do capitão 12%. 

A crer na sondagem mencionada, a partilha das intenções de voto espelha de modo direto a distribuição dos votos reais conferidos no primeiro turno.Diante do quadro, quais seriam então as chances de Fernando Haddad ser eleito? 

Há apenas dois caminhos possíveis e óbvios: converter votos dados à extrema-direita e atrair os eleitores que optaram por voto em branco e nulo, além de parte do contingente dos que se abstiveram. Tal universo corresponde a cerca de 40% do eleitorado brasileiro. Parte do contingente corresponde a eleitores de baixas renda e escolaridade, um universo no qual Haddad possui vantagem expressiva.

As possibilidades de reversão de votos é mais remota. O núcleo duro e incondicional dos eleitores do capitão parece ser indevassável. Formam, com efeito, algo assemelhado à ideia de “massa fechada”, sugerida por Elias Canetti em seu clássico livro Massa e Poder. Constituem um país a parte, dotado de linguagem própria e circuitos de informação rigorosamente endogénicos e autossuficientes. Compõem um caldo cultural avesso a mediações e abstrações, e adepto da ação direta e de uma cultura política de atrição. A necessidade de erradicação de tudo que sabe a PT, para tais adeptos, é cláusula pétrea. Inútil imaginar conversões em tal contingente.

Resta saber se há adeptos do capitão sensíveis a apelos eleitorais de ordem mais abstrata. Este na verdade, sempre foi um dos pontos vulneráveis do processo civilizador: obter um padrão de sociabilidade regulado por abstrações – isto é, leis, imperativos e valores – com o correspondente rechaço de culturas de ação direta, fundadas no atrito e na violência. No caso em questão, trata-se de apelos à manutenção da democracia, dos direitos humanos, da incolumidade das minorias e do respeito à Constituição.

A lógica simbólica do campo adversário a isto opõe o que seria a dura materialidade da criminalidade e da corrupção. Uma reversão dos moderados, atraídos pelo campo da extrema direita, dependeria da manifestação pública e inequívoca por parte gente localizada no centro do espectro político.  Para tal, seria necessário um redesenho dos termos do conflito: não mais um prélio eleitoral entre dois partidos, mas um processo galopante de crise que põe em risco o quadro democrático, com a clara indicação da origem da ameaça. Até o momento, há quem concorde que os perigos são reais, mas insistem na indiferenciação entre os candidatos, como se ambos fossem portadores da mesma escala de riscos.

Em termos concretos, a retração do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso nesse processo é espantosa. O candidato da extrema direita, em meio à defesa da necessidade de extermínio físico de inimigos, nomeou expressamente o ex-Presidente como merecedor de fuzilamento. Por mais que tenha sido criticado – por vezes com alguma injustiça, devo dizer – pela oposição a ele dirigida pelo PT, nada de semelhante foi-lhe dito. Fernando Henrique possuía até há pouco relações de respeito com Lula, além de incluir em seu círculo de amigos gente à esquerda. Sua indiferença – semelhante a de um adepto do FCP a assistir a um Dérbi da Capital – não deixará incólume sua dignidade pública.

A candidatura de Fernando Haddad excede a moldura de uma campanha eleitoral com vistas à conquista da Presidência da República. Talvez seja ela a última barreira possível que o país dispõe, no tempo imediato, para conter o acelerado processo de desconstrução civilizatória em curso. A ele impõe-se a necessidade de tornar crível sua capacidade de liderar uma coalizão democrática, que, se bem sucedida, excederá o seu próprio partido. Haddad possui os valores e as convicções necessárias para tal, mas terá que abandonar atavismos sectários bem nutridos pela nomenclatura petista, tais como a defesa do assim chamado “socialismo bolivariano” que, ademais, é absolutamente inconsequente.

O caminho a perseguir parece estar longe de ser auspicioso. A Haddad é exigida uma autocrítica, como se isso não se aplicasse a seu oponente, defensor notório de torturadores. Trata-se, na verdade, de uma terrível e kafkiana assimetria das exigências: para que vença é imperativo que Haddad diga a “verdade”, e faça mea culpa a respeito das práticas heterodoxas de membros de seu partido; para que o capitão vença, basta que siga com as simplificações, os estereótipos e as ameaças usuais. Os liberais exigem a total contrição haddadiana, ao mesmo tempo em que são indulgentes com as alarvidades ditas e cometidas pelo campeão da extrema-direita.

De qualquer modo, a coalizão democrática possível deverá exceder o tempo das eleições. Impõe-se, neste sentido, que se constitua como eixo de sustentação de um governo Haddad. No entanto, é mais provável – e infinitamente mais importante – que possa se configurar como eixo da resistência democrática ao despautério que começa a tombar sobre o país. A ver vamos.   

[1]. Filósofo político, Professor Associado da PUC-Rio e Investigador Associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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