sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Dureza dos tempos, horror à abstração

(Publicado no jornal "Expresso", Lisboa, em 5/10/2018)

Renato Lessa

Nos tempos idos da ditadura militar que se abateu sobre o Brasil, entre 1964 e 1985, habituamo-nos a memorizar os nomes dos componentes dos comandos castrenses. É que a seletividade da atenção dos humanos é sempre afetada pela saliência do que a eles se impõe como relevante: parece mesmo ser regra de bom senso saber dos nomes daqueles a quem devemos temer. Assim, transformamo-nos em leitores compulsórios do “Boletim do Exército”, em dura experiência com o lado, digamos, rústico da prática do idioma português. Mudanças nos comandos mais importantes valiam como sinais cabalísticos para elucidar o significado sempre fugidio das coisas: ler, no nome e na fisionomia dos generais promovidos, os desenhos dos futuros possíveis que nos aguardavam.

E havia mesmo tipos teratológicos. Lembro-me bem de um general, cuja estatura era inversamente proporcional à crueldade que emanava de seu semblante. Era conhecido pelos colegas de ofício como “Caveirinha”, e do alto de seu pouco mais de metro e meio, devo dizer, era mesmo mau como as cobras. Havia muitos outros comparáveis em escala de assombro, outros nem tanto, cuja eminência eventual indicava, segundo os mais crédulos, sinais de que a coisa se amainava.

Com o fim da ditadura, o princípio da atenção seletiva dirigiu-nos para outros sítios. E assim viemos. Com a Constituição de 1988, que fez do sistema de justiça – juízes e ministério público – os fiadores maiores dos direitos ali inscritos, passamos a memorizar nomes de juízes que compõem as cortes judiciárias. Hoje é mais fácil declinar os nomes dos componentes do Supremo Tribunal Federal, do que os dos 11 membros da equipa nacional de futebol.

O filósofo norte-americano Nelson Goodman disse em certa altura que nossa capacidade de não ver as coisas é infinita. É que passamos a vida, por irresistível inclinação antropológica, a construir e pintar mundos para nós mesmos. Não é necessário que nos convertamos em positivistas ultramontanos para reconhecer que, para além dos mecanismos simbólicos e dos quadros de expectativas construídos, há um mundo lá fora, cuja desagradável insistência em existir opera como contraponto ao animo imaginário. Pois bem, tudo isto para dizer que, a despeito da “reinvenção democrática”, o mundo militar subsistiu entre nós, intocado em sua substância, mesmo que não saibamos seus nomes.

A retração e invisibilidade do estamento militar, por comparação à sobre eminência anterior, foi não raro tomada como índice de aquiescência à ordem constitucional. Tratar-se-ia, se fosse este o caso, de mutação de não pequena monta: aceitar tal subordinação à Constituição exige, por maioria de razão,  abandonar a posição de poder constituinte originário, ocupada pelo estamento desde os idos de 1964. Não que não houvesse sinais visíveis de ativismo, procedentes da suposta invisibilidade: já na altura dos debates a respeito da nova Constituição -  em 1987 e 1988 – os militares fizeram ouvir suas exigências. A mais importante está contida no que veio a ser o artigo 142 da Constituição, que atribui às Forças Armadas o papel de guardiães da “lei e da ordem”, para cuja defesa podem ser mobilizadas pelos poderes constituídos.

Os apaziguadores entre nós apegaram-se ao elemento restritivo contido na ressalva de que a mobilização militar deverá decorrer de solicitação dos poderes da República. O fato é que a ressalva é precedida da norma geral que concede às Forças Armadas o papel de garantia da ordem. E como sempre é o caso diante de máximas gerais, o que importa é saber quem decide a respeito do caso particular, como bem ensinava o Dr. Carl Schmitt.

Com os tempos que correm, voltamos nossa atenção a nomes militares. Para já, temos o candidato da extrema-direita, o capitão Jair Bolsonaro, versão militarizada do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte. O capitão é um veterano da política. Deputado federal há 28 anos, perfilou-se invariavelmente com o baixo clero da política brasileira, e fez-se notável pela defesa do regime militar, do uso da tortura e de ameaças a inimigos. O núcleo duro de sua trajetória pode ser assim resumido: a promoção de uma cultura de violência no âmbito da política, complementar à crescente demonização da atividade política, ocorrida entre nós, sempre associada à recusa do valor de qualquer mediação. A isto se soma a correspondente valorização da ação direta. Bolsonaro é “espontâneo”, tal como o são Salvini e Dutarte.

O personagem, do ponto de vista clínico, não é desinteressante. Exibe uma combinação didática entre uma forte homofilia e homoafetividade com manifestações furiosas de homofobia. Suas aparições públicas mostram-no invariavelmente acompanhado de homens rudes, com bíceps avantajados e semblantes de poucos amigos. Não há mulheres presentes. Seus aliados e parceiros são apresentados como “namorados. Curiosa criatura, caso clínico notável para aulas introdutórias a respeito do tema do recalque. Fascínio pelos músculos másculos e horror à abstração.

Seu companheiro de “chapa”, o general Antonio Mourão encarregou-se do núcleo, digamos, doutrinário da campanha. Sua premissa maior apresenta os brasileiros como um amálgama infeliz: o “amor dos portugueses ao privilégio, a indolência dos indígenas e a malandragem dos negros”(sic). Um pessimismo antropológico profundo emerge, em sucessão imparável de atos falhados. Como bem sabemos, atos falhados não mentem e correspondem, se calhar, ao que mais possuímos de genuíno. Neste caso, os atos estão a indicar que precisamos ser salvos de nós mesmos, de nossos defeitos constitutivos, acompanhados de altruística indicação do terapeuta.

Dois cenários apresentam-se para o Brasil. A possível vitória eleitoral da extrema direita trará para o proscênio o componente militar. Não sabemos, por certo, a extensão dessa expansão e, se calhar, nem mesmo os animadores da perspectiva o sabem. O que é certo é que o país se abrirá para uma combinatória perversa entre ultraliberalismo econômico e autoritarismo político. A possível vitória da centro-esquerda – com Fernando Haddad -, para além dos dilemas específicos de seu próprio campo, ver-se-á diante de um problema de imensa magnitude: o candidato derrotado da extrema direita não reconhecerá sua derrota e incitará clamor público pela revisão do resultado.

Um golpe de dados não abolirá o acaso. Sempre se pode contar com o facto de que os humanos não são animais prescientes.  Os que pretendem mergulhar o país na aventura extra-constitucional não controlam, por definição, os enredos decorrentes possíveis. Não estamos condenados de antemão a voltar a consultar o “Boletim do Exército”. 


[1]. Professor Associado de Filosofia Política da PUC-Rio e Investigador Associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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