terça-feira, 28 de julho de 2009

Mundo Lattes I: A fábula do pequeno Olson

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, em março de 2009)
Há cerca de uma década, estive envolvido na criação da Associação Brasileira de Ciência Política. Uma de minhas atribuições era a de tentar transformar colegas de profissão em afiliados. Em uma de minhas incursões, deu-se um acontecimento que permaneceu fixado em minha memória. Trata-se de algo que revela de maneira cabal o quanto de nossa adesão a teorias e hipóteses a respeito do funcionamento da sociedade e da vida política confunde-se com nosso próprio comportamento e nossas crenças pessoais. É desta fábula que quero falar. Para que ela faça sentido ao leitor, preciso antes resumir os contornos de uma teoria que exerceu – e segue a exercer - enorme fascínio entre os cientistas políticos.

Em 1965, o cientista social Mancur Olson Jr.(1932-1998) publicou um livro que viria a produzir forte impacto. Trata-se de Lógica da Ação Coletiva, obra que considerou uma das mais antigas questões das ciências sociais: porque e em que condições os seres humanos associam-se para produzir ações coletivas, voltadas para gerar benefícios comuns? Sua resposta refutou a sabedoria tradicional que sustentava que indivíduos que possuíssem algum interesse no benefício comum a ser criado teriam nisso uma razão suficiente para porem-se ao trabalho de produzi-lo.

Nonada, diria Olson, se houvesse lido Guimarães Rosa. Segundo ele, indivíduos racionais, mesmo interessados no resultado de uma ação coletiva capaz de gerar um benefício público, melhor fariam se permanecessem apáticos, sem qualquer esforço. Eis a lógica da coisa: por se tratar de um benefício público, todos – ativos e apáticos – poderão dele usufruir; mais racional, portanto, é obter os ganhos sem incorrer em custos, de tempo e de chateação. Trocando em miúdos, é como o tipo que no ponto de ônibus não faz sinal para o bólido que se aproxima, porque sabe que outros o farão e que, ainda assim, não será impedido de embarcar. Trata-se do princípio do carona – free rider: aquele que usufrui do esforço dos demais e não pode ser excluído das vantagens desse mesmo esforço.

Se assim é, como explicar que algumas ações coletivas aconteçam e que indivíduos delas participem? A resposta de Olson é de congelar qualquer idealista: as ações coletivas, sobretudo em grandes grupos, são proporcionadas pela distribuição de benefícios seletivos e/ou pela coação. A expectativa do ganho pessoal – “levar algum a mais” – é o segredo da coisa. A coação física e moral também faz das suas. São fatores dessa natureza que levariam seres egoístas a se mobilizarem pelo bem comum.

A teoria de Olson foi bastante criticada. Com que justificativa, afinal, poder-se-ia tomar o comportamento de egoístas como algo natural ou racional? Por outro lado, historiadores e cientistas sociais descrevem o tempo todo ações coletivas fundadas em bases afetivas, simbólicas ou políticas, nas quais a lógica utilitarista – cálculo de custos e benefícios - de Olson parece estar ausente. Com essa breve descrição, volto à fábula.

Em uma das incursões para atração de adeptos para a Associação, deparei-me com a seguinte pergunta de um jovem cientista político: “que incentivo seletivo você oferece para que eu me associe”? O jovem carona clamava pelo seu benefício especial. De imediato, percebi que a teoria de Olson – independentemente de sua capacidade explicativa - deixara de ser uma hipótese a respeito do funcionamento da sociedade, para transformar-se em um guia de auto-ajuda.

O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) exumou, em um livro publicado postumamente em 2001 – Dits et Écrits -, um antigo conceito do cristianismo antigo, o de exomologese. O significado literal é o de uma confissão pública, uma encenação da uma verdade tida por absoluta por aquele que confessa. Para Foucault, trata-se de uma afirmação enfática na qual o sujeito liga-se a essa afirmação, aceitando todas as suas conseqüências. Nesse sentido, fazer a exomologese de uma teoria que parte do suposto de que os seres humanos são, por natureza, egoístas, significa adotar o egoísmo como forma de conduta pessoal.

Para além das implicações morais, há aqui um grave problema. Teorias são hipóteses a respeito do mundo, e não orientações absolutas para questões de escolha pessoal.

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