sábado, 8 de agosto de 2009

Linchamentos

Renato Lessa
(Publicado orginalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, em abril de 2009)

Há cerca de cinco anos, em um subúrbio carioca, dois rapazes, acusados da prática de assalto à mão armada, foram linchados por uma multidão. A polícia encontrou o fato já consumado e fez apenas uma prisão em flagrante: uma idosa sobre um dos cadáveres, com uma colher de sobremesa, a arrancar os olhos do que restou de um dos supostos meliantes. Levada para a delegacia, nada mais lembrava do transe que a fez participar do ritual de justiçamento
José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo, há quarenta anos dedica-se à recolha de informações a respeito dos linchamentos no Brasil, práticas coletivas que vitimam prioritariamente homens pobres e são praticadas por grupos vicinais urbanos, que incluem homens, mulheres e até mesmo crianças. Martins possui um arquivo no qual, desde 1940, estão registrados cerca de 2000 casos. Segundo ele, “o Brasil lincha desde o século XVI” e é o país no qual ocorre o maior número de linchamentos”.
Ainda assim, quase nada sabemos a respeito de porque linchamentos ocorrem. A respeito dos olhos arrancados, Martins dá-nos explicação sugestiva: mais do que destruir o corpo dos vitimados, a multidão que lincha visa apagar todos os sinais de humanidade, o que inclui o propósito de eliminação de suas “almas”. Sem os olhos, condenam-se a uma desorientação eterna, sem qualquer possibilidade de remissão.
Há, por certo, marcadores mais objetivos. Os lincháveis são, em geral, indivíduos acusados de roubos – associados a atos violentos – e, sobretudo, de estupros e crimes sexuais. As multidões de linchadores localizam-se, em sua maioria, nas periferias pobres, com baixa presença dos poderes públicos. Demonstram, ainda, descrença na capacidade punitiva e reparadora da justiça e desconfiam (muito) da polícia. Mas, dizer isto é muito pouco. Quantos brasileiros, afinal, identificam-se com o prontuário social acima delineado, sem que jamais lhes tenha ocorrido participar de um linchamento?
O antropólogo moçambicano Carlos Serra, da Universidade Eduardo Mondlane, tem analisado as “infra-estruturas sociais, na retaguarda dos linchamentos” em seu país - um dos campeões mundiais -, praticados em três modalidades, de acordo com suas vítimas: (i) acusados de roubo e estupro”(homens de 18 a 29 anos); (ii) acusados de feitiçaria (mulheres) e (iii) submetidos à morte social (por mutilação e imposição de sinais físicos, em geral a “feiticeiros”)[1]. Os sinais infra-estruturais estão aqui presentes: criminalidade descontrolada, desemprego, concentração demográfica, etc... Mas, ainda assim, nem todos os submetidos a tais condições passam ao ato, como diriam os psicanalistas.
Carlos Serra analisou redações de crianças do ensino primário, de 11 a 13 anos, desenvolvidas a partir das seguintes perguntas: “o que se deve fazer a um ladrão?” e “o que se deve fazer a um feiticeiro?”. No caso dos ladrões a resposta padrão foi “infringir-lhes castigo prévio e depois entregá-los à polícia”. Para as feiticeiras, a morte pelo fogo. As redações revelam ainda o peso de uma cultura de justiça punitiva e da familiaridade com o castigo físico como forma de correção. A impressionante análise de Carlos Serra inclui, ainda, o relato da explosão de alegria, presente no ritual do linchamento, percebido e vivido como experimento de purificação.
As razões dos linchamentos parecem esfumar-se na própria crueldade humana, tema milenar e sempre inacabado. Afinal, o que conduz membros da espécie a algo como o linchamento? Ainda que as origens sejam obscuras, parece haver método na coisa e um saber acumulado pela experiência. Os linchamentos brasileiros são sempre precedidos de atos de aproximação, nos quais a vítima é atingida por pedras e pauladas. O passo seguinte é o da queda, que permite o máximo de aproximação pessoal e física com o agredido, através de golpes diretos com pés e mãos e uso de facas e instrumentos de perfuração. Mutilações nessa fase não são incomuns, desde que não matem. A fase final, desse ritual que dura cerca de 45 minutos, é representada pelo fogo, imposto com a vítima ainda viva e como garantia de que no resultado final a forma humana não mais será reconhecida. A retirada dos olhos demonstra o cuidadoso zelo de uma multidão capaz tanto de atos de extrema crueldade, como grande de familiaridade com as mais comezinhas práticas inofensivas da vida quotidiana.

[1]. Ver http://www.oficinadesociologia.blogspot.com/.

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