domingo, 23 de agosto de 2009

Testemunho da força de quem resiste

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, de agosto de 2009)
Uma parte importante da história do Rio de Janeiro - e, por extensão, do país – acaba de ser reunida e contada. Trata-se de um belo, triste e corajoso livro, há poucas semanas lançado, sob o título de Auto de Resistência: relatos de familiares de vítimas da violência armada (Editora Sete Letras), organizado com extremo cuidado e engenho por Barbara Musumeci Soares, Tatiana Moura e Carla Afonso. O livro resulta de trabalho singular e necessário, executado pelo Projeto de Apoio a Familiares de Vítimas de Chacinas, sediado no Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, em colaboração com o Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra.

O livro pretende registrar o testemunho da "força de quem resiste" e foi "feito a muitas mãos, por uma equipe mista de familiares e de profissionais da palavra e da imagem", segundo os termos usados em sua apresentação. Põe-se, ainda, "a serviço da preservação da memória de um doloroso aspecto da nossa vida social, como um retrato vivo de uma realidade que não pode mais cair no esquecimento".

E de que "aspecto doloroso" se está a falar? Trata-se da forte e indelével presença da violência armada na cidade do Rio de Janeiro e em suas periferias, que tem encontrado em jovens pobres do sexo masculino suas vítimas - e agressores - preferenciais. Os números do problema envolvem estatísticas dispostas em séries nas quais constam itens tais como " encontro de cadáver", "encontro de ossada", "morte suspeita", "pessoas desaparecidas e homicídios dolosos". Para consulta numerológica, sugiro o sítio do Instituto de Segurança Pública, do governo do Estado do Rio de Janeiro (www.isp.gov.rj). Para as razões, os significados e os efeitos da matança sugiro outros trajetos de investigação. Em particular, o da escuta dos que sobrevivem e não esquecem. E é justamente isto que pode ser encontrado no livro em questão.

Um dos aspectos mais letais e dramáticos do quadro doloroso é o das chacinas e execuções sumárias, quase sempre associadas a ações das polícias no Rio de Janeiro. São muitas as chacinas, assim como os seus vitimados. Para além do abismo e da impessoalidade das estatísticas, há as histórias de vida dos que são executados e a dor, o trauma e a permanência na vida dos que sobrevivem. O lado pungente do livro encontra-se precisamente nesta dobra. Ali temos relatos de quinze mães, duas esposas, uma sogra e uma irmã, que permaneceram com a morte em seus colos. Um contingente de mulheres mais do que corajosas, a militar pela preservação da memória dos que perderam e por sua inscrição ativa na vida, por meio da interpelação cívica e da demanda por justiça.

Cada uma dessas mulheres apresenta, na primeira parte do livro, seus relatos, nos quais, para além dos episódios que suprimiram do mundo seus filhos, maridos, irmãos e genros, fala-se das últimas lembranças dos mesmos ainda em vida, do último dia de convivência, do impacto da perda no cotidiano. Tudo isso com um cuidadoso suporte editorial pelo qual a situação judiciária de cada caso é apresentada.

Mas não falta o outro lado da dobra. A par disto tudo, as fotografias dos que se foram devolvem à vida e à memória os vitimados, para além da numerologia e da terminologia macabra dos cadáveres e ossadas. E o que denotam as fotografias é a presença de uma vitalidade em vias de ser suprimida. São fotografias vivas, totalmente afastadas de imagens frequentes das vítimas de morte violenta que nos exibem seus documentos de identificação.

Mais do que os relatos da perda e das últimas memórias e das fotografias dos vitimados, há ainda, na segunda parte do livro, o registro do que pode ser designado como as dificuldades da escuta. Aqui reside uma dimensão dramática, há muito detectada por Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, quando diante de seus relatos do que se passou nos campos de extermínio percebia reações de incredulidade e de inexpressão. Em um certo sentido, não estamos preparados para ouvir essas histórias, mas é imperativo que o façamos. Narrativas a respeito das dificuldades de escuta e da indiferença, por parte das autoridades, aparecem nesta segunda parte do livro associadas a relatos sobre a militância e sobre o convívio com quem também foi vitimado. Há um sujeito coletivo ali implicado, que não abole as particularidades de cada experiência, pois todas elas são, a um só tempo, compartilháveis e incomensuráveis.

Um livro, enfim, para ler, ver, chorar e pensar. E mais do que isso, para melhor qualificar a interpelação cívica: são democráticos uma sociedade e um regime político nos quais as forças da ordem impõem tamanho sofrimento e brutalização?

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