sábado, 8 de agosto de 2009

A honra do PMDB

Renato Lessa
(Publicado originalmente no Suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, em março de 2009)

Corria o verão português de 2004, o verão no qual morreu o genial Carlos Paredes, e o então Ministro da Educação da República Federativa do Brasil, Tarso Genro, fez uma visita à Lisboa. Sua agenda incluiu um encontro, organizado pela embaixada brasileira, com gente de relevo da esquerda e da vida intelectual portuguesas, para explicar o que se passava no Brasil, sob o governo Lula, ainda em fase larvar e pré-mensalão. Sob a hospitalidade do então embaixador brasileiro, o ex-deputado e ex-Presidente da República Paes de Andrade, lá estavam representantes do Bloco de Esquerda (Ana Drago), do Partido Comunista Português (António Felipe), do Partido Socialista (Mário Soares) e da Confederação Geral dos Trabalhadores de Portugal/CGTP (Carvalho da Silva). A representação dos intelectuais primou mais pela qualidade do que pela quantidade. Limitou-se ao cientista social Manuel Villaverde Cabral, um dos principais intelectuais portugueses e grande conhecedor do Brasil, que, como dizem seus compatriotas, “de borla”, levou um seu amigo que, testemunha do fato, agora o rememora neste artigo.
O Ministro brasileiro, na confortável residência diplomática do Restelo, em certo ponto de sua explanação definiu o que para si resumia o caráter do governo brasileiro: um governo que, embora dirigido por um partido de esquerda e um presidente idem, não poderia ser tomado como um “governo de esquerda”, dada a ampla coalizão que o sustentava, a incluir agremiações de centro, de direita e de lugar algum, pensei eu. Para tornar mais clara sua avaliação do paradoxo existencial, Tarso Genro mencionou o caso do PMBD, segundo ele um partido não de esquerda, mas dirigido por um presidente de honra – o próprio embaixador presente à tertúlia -, ele sim, “um homem de esquerda”. O embaixador, até então silente durante a explanação e como que tomado por um desejo forte de esclarecimento, interrompeu e acrescentou: “sou o presidente de honra de um partido que perdeu toda a honra”.
O efeito sobre os interlocutores portugueses – e, devo dizer, sobre mim mesmo – foi devastador. Até então, a conversa já possuía dose considerável de complexidade. Afinal, explicar a dialética que configura um governo que não é de esquerda, mas possui um presidente de esquerda e é identificado a um partido de idêntica extração não é tarefa simples. Pior ainda foi transmitir a mensagem de que estava em curso um processo de transformação social, de corte progressista e democrático, sob a égide da ortodoxia palocciana. Mas, a compexidade envolvida até o momento esfumou-se diante da declaração do embaixador. Para os interlocutores portugueses, além de desprovida de sentido intrínseco, a proposição afetou de modo fatal a suposição de que estavam sob a hospitalidade de gente séria.
(É curioso e lamentável o destino dado à embaixada brasileira em Lisboa. Para ali tem sido enviada uma legião de hemiglotas e amigos dos governos da ocasião, sem qualquer traquejo diplomático, todos agraciados com o posto por razões de natureza partidária. A recíproca, por sinal, não é verdadeira. Para a diplomacia portuguesa, o posto em Brasília é de relevância comparável a postos como Londres, Paris, Madrid ou Washington. A qualidade intelectual e profissional dos representantes enviados ao Brasil por Portugal atesta tal centralidade).
Mas, o que importa é que o deputado Paes de Andrade produziu, em 2004, um desabafo cujo sentido preciso volta a emergir nas explosivas declarações do Senador Jarbas Vasconcelos, como ele um dos fundadores do partido e integrante de seu grupo “autêntico”. É importante reter o conjunto de teses posto pelo Senador. Sua premissa maior é da mediocrização generalizada do quadro político brasileiro: “a classe política hoje é totalmente medíocre”. No que diz respeito ao partido, seguem juízos mais específicos. O partido reduz-se a uma “confederação de líderes regionais” e seu componente coronelístico está presente em “90%” de sua estrutura e abrangência. Trata-se, ainda, de um partido voltado para os negócios, pragmaticamente conduzido por uma estratégia precisa: “usufruir do governo (federal) sem ganhar eleições”.
Difícil – aliás, muito difícil – discordar da avaliação do Senador Jarbas Vasconcelos a respeito de seu partido. Afinal, que sentido maior pode ser retirado da observação do que fazem, e vem fazendo há muito, personagens como Renan Calheiros, Romero Jucá, Eduardo Cunha, a não ser o fato de que exercem uma política de ocupação física e material de postos estratégicos no gigantesco mundo dos negócios da política? Alguém conhece alguma causa ou princípio imaterial que possam estar associados às suas trajetórias? (Sei que são coisas que não devem ser ditas por politólogos, mas ao ver gente desse cariz a ocupar posições de poder, como não perguntar: é para isso que votamos?)
Embora dura e pertinente, a análise do Senador deve ser ampliada. O PMDB, movido pela lógica exposta por um de seus próceres – ainda que dissidente – exerce um efeito de grave contaminação sobre a política brasileira. O fato de ocupar um lugar tão central e estratégico na política brasileira não torna visíveis apenas as suas patologias internas enquanto partido. É a própria qualidade da vida pública que é afetada, quando o partido impõe-se como esteio de “governabilidade” e como garantidor de aquiescência legislativa. O PMDB impõe uma lógica política de contaminação a seus parceiros que, no processo de interação, tornam-se cada vez mais parecidos.
Em termos diretos, a presença do PMDB como base da “governabilidade” no país – não importa quem esteja a governar - é um dos aspectos mais nefastos da vida pública brasileira. Não deve tranqüilizar a ninguém, medianamente preocupado com a qualidade da democracia brasileira, saber que o governo do dia é estável, por possuir apoio parlamentar do PMDB. O partido é a negação do princípio da representação. Exige, como condição de existência, a vigência de uma cultura política autárquica, na qual o parlamento é um espaço inviolável de negociações com o Executivo. Nessa rede de barganhas, o voto conta apenas como dimensão material e numérica. As temporadas de captura de sufrágio que se abatem sobre o país a cada dois anos não parecem estar a serviço do fortalecimento dos mecanismos de representação política. Em grande medida, reduzem-se a um método eficaz de seleção de operadores políticos – parlamentares - cujo comportamento é ininteligível do ponto de vista dos princípios da representação. Como explicar, por exemplo, que um obscuro deputado carioca, do PMBD, tenha sido considerado pelo governo federal como “dono de Furnas” e encarregado da prerrogativa de indicar seu presidente? O deputado em questão, por decisão de seu partido, controlava importante comissão na Câmara de Deputados, com considerável poder de chantagem sobre o Executivo.
Os politólogos dirão que isso é da vida e que se os homens fossem anjos, o governo não seria necessário. Tudo bem, que seja. Mas, honestamente, cabe ainda falar em “representação política” quando a vida pública do país é regida pela rafaméia nomeada pelo Senador Jarbas Vasconcelos? É difícil imaginar uma alternativa curativa ao “mal do PMDB”. O próprio Senador em sua crítica não pode ser tomado como politicamente inocente. A despeito da pertinência do que diz, seu movimento tem a clara finalidade de, como diz, “dar um Norte” à dissidência que em 2010 marchará com José Serra. Há uma estranha dialética no ar: o Senador e seus adversários dão, afinal, passos necessários para que o PMBD esteja no governo da República, a partir de 2011, sem ganhar as eleições.
(Publicado no suplemento Aliás, do Estado de São Paulo, em março de 2009)

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