quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Do racismo ao racialismo

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, vol. 52, n. 253, outubro de 2009)

Países são mais do que agregados numéricos e demográficos. Se tomarmos todos os indicadores sociais, políticos e econômicos – e os demais existentes - de um determinado país e se os acoplarmos um tanto imaginariamente, não teríamos a fisionomia de uma sociedade real, mas tão somente uma barafunda de números. Faltariam as expectativas, as imagens, as crenças, os valores, para dizer o mínimo. Dimensões que não podem ser reveladas em indicadores precisos, mas que, talvez por isso mesmo, constituem o cerne da dinâmica social. Quer isto dizer que países são experimentos reflexivos, mais do que sedimentações materiais. E por assim o serem, parte da atividade reflexiva que encerram diz respeito à busca incessante de respostas a respeito de que identidade possuem e de que futuro devem ter.
O Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pela Câmara de Deputados, mais do que um diploma legal, contém uma interpretação do que é e deve ser o Brasil. Pelos seus termos, os brasileiros passam a, em termos legais, dividirem-se em grupos “raciais” distintos. A um conjunto de afro-descendentes corresponde outro de euro-descendentes, o que é curioso em um país no qual a quase totalidade dos pertencentes a um desses grupos pertence também ao outro.
O reconhecimento de legal de “raças” não é, contudo, privilégio brasileiro. Antes da Câmara ter aprovado o Estatuto – que deverá ainda ser apreciado pelo Senado -, a Alemanha dos anos trinta, sob o nazismo, fizera coisa parecida, por meio da distinção legal entre arianos e não-arianos. Os legados do apartheid sul-africano e o da exclusão eleitoral dos negros no sul dos Estados Unidos, até os anos sessenta, devem ser incluídos na série pouco edificante.
Pelo Estatuto passamos a ter uma história cujo ensino deve ser contado na perspectiva de uma luta de raças. Tratar-se-ia de uma história na qual “brancos” oprimem “negros”, por mais de 300 anos, a definir um quadro que exigiria reparação eterna. Com efeito, a reconstrução da história pretérita produz efeitos no presente e no futuro: o Estatuto estabelece uma série de vantagens fiscais para empresas que empreguem no mínimo 20% de trabalhadores de cor negra – ou não-branca. É de se imaginar os efeitos de tal medida, que acabará por instituir uma divisão racial entre os trabalhadores, quebrando formas tradicionais de solidariedade. No mínimo haverá que julgue um avanço podermos contar, no futuro, com sindicatos raciais.
Pesquisas de natureza sociológica – tais como as desenvolvidas por Nelson do Valle e Silva e Carlos Hasenbalg, a partir dos anos 1970 - indicam que a cor da pele – ou a “raça” – é um marcador social significativo. Os indicadores negativos de renda, e educação quando associados à cor da pele – “negros” ou “pardos” – configuram os estratos sociais mais vulneráveis no país. Por essa via, a sociologia empírica parece ter refutado a idéia de que temos no país um quadro de harmonia “racial”, tal como teria sido sugerido por Gilberto Freyre. Justiça seja feita a Gilberto Freyre. Sua obra não visava refutar a presença da discriminação racial no Brasil, mas simplesmente mostrar a estupidez básica de um racismo renitente diante de um experimento social e histórico fundado em uma combinação, um tanto sincrética, de populações de enorme diversidade e cores de pele distintas.
Há, por certo, um enorme passivo social no país, a submeter os cidadãos a condições injustificáveis. As cores, nesse conjunto, são variadas. Ainda que atitudes racistas sejam contumazes, cabe criminalizá-las e combatê-las no plano da educação e dos valores. O Estatuto da Igualdade, movido pelo impulso impecável de combater o racismo, poderá ter efeito contrário, qual seja, o de instituir, à moda americana, um padrão social baseado em “grupos raciais”, com direito a reconhecimento jurídico diferenciado. Se a coisa passar no Senado, talvez seja o caso de falar em des-Proclamação da República.

Nenhum comentário:

Postar um comentário