sábado, 4 de junho de 2011

A difícil oposição

Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás, do Estado de São Paulo, em 1/5/2011)

Um dos grandes presidentes da Casa dos Representantes (House of Representatives) - a Câmara de Deputados dos EUA -, o lendário Tip O’Neill, a certa altura disse que “toda política é local”. Por mais que possa mobilizar temas e interesses de ordem mais geral, a dinâmica da política releva do localismo e do imediato. O’Neill, típico New Dealer Democrat de ótima cepa, passou 50 de seus 82 anos de vida como parlamentar, 34 dos quais em Washington, tendo presidido a Casa por dez anos, de 1977 a 1987. Insistia no caráter local da política, não tanto por paroquialismo, mas pela defesa de uma concepção de representação que vinculava os representantes aos representados.
Há outro sentido possível para a expressão. Da mesma forma que os temas da, digamos, grande política vinculam-se a cenários locais, estes, por alguma operação metonímica, podem dar passagem ao vislumbre do geral. Supor que localismo é apenas localismo significa opção deflacionada para o uso de nossas – já precárias por constituição própria – capacidades cognitivas. O localismo pode ser pensado, sem prejuízo da atenção a fenômenos particulares, como ponto de observação do cenário mais amplo da política e seu espaço de decantação.
Supor, por exemplo, que o drama dos tucanos em São Paulo tem como fundo divergências entre vereadores do partido e o governador do estado é levar a hipótese do localismo às raias do paroxismo. Mais do que isso, significa supor que o PSDB, que, a despeito da pretensão de reconfigurar o país, sempre foi caracterizado como de extração paulista, padece da maldição de encerrar os seus trabalhos por força de uma crise paulista.
Dissolve-se hoje, a olhos vistos, o PSDB, assim como o agonizante DEM, herdeiro do finado PFL. Há quem culpe o prefeito de São Paulo, pelo gesto oportunista de “fundar” um partido novo. Não tenho mandato e nem ânimo para defendê-lo, mas mais espantosa do que a esperta iniciativa é a magnitude do estrago da aventura sobre legendas partidárias ditas “consolidadas”. O quadro, digamos, doutrinário do partido do Dr. Kassab, como sabido, é indigente, mesmo para padrões nacionais. Trata-se de legenda que se apresenta como não sendo nem de esquerda, nem de direita e nem de centro. O corolário tático da estimulante renovação nos programas partidários é a disposição para apoiar o governo federal, os governos estaduais e, é claro, os governos municipais.
É uma tentação destacar o lado ubuesco da iniciativa, mas esse reembaralhamento oportunista não diz ele algo a respeito da vida partidária brasileira em geral?
O veterano O’Neill preocupava-se com o nexo entre representantes e representados. Padecia, portanto, de uma concepção de política que, ainda que asssentada no mundo parlamentar, supunha que a vertebração dos partidos tem a ver com o que fazem fora do âmbito legislativo. Concepção fora de moda, a crer nos analistas e estudiosos brasileiros que dizem que o que importa é saber como os parlamentares votam em plenário, no exercício de seus mandatos. Ainda segundo essa concepção autárquica do mandato e da representação, aprendemos que os partidos brasileiros são altamente disciplinados em seu comportamento parlamentar. Nada de errado com eles: os governistas tendem sempre a votar com o governo e os oposicionistas com a oposição. O bom Aristóteles sabia o que estava a dizer quando afirmava que juízos tautológicos são sempre verdadeiros.
As dificuldades da oposição são enormes. Há quem as atribua às excelências do governo Lula, o que teria reduzido as margens de crítica. Tese não raro vociferada por áulicos obsecados pela ostensão de índices de desempenho. Alguns desses índices são mesmo notáveis, o que, é evidente, estabelece limites ao discurso responsável e torna um tanto ridículo o catastrofismo. Mas, como desconheço governo infalível, sempre há margem para oposição, se esta – é evidente – tem algo a dizer; se oferece ao país uma alternativa fiável e distinta. É inacreditável que um partido capaz de conquistar cerca de 40% dos votos nacionais em 2010, contra uma candidata apoiada por um governo de altíssima popularidade, tenha perdido o mapa de acesso a tal patrimônio. Perceber essa conquista como derrota é sinal inequívoco de pouco apego ao pensamento.
As artes do “presidencialismo de coalizão”, por outro lado, ultrapassam seus efeitos imediatos de garantir “base aliada” numerosa e segura. Sua extensão esteriliza a política, porque sustentada na convicção de que a saúde da democracia depende da disposição dos parlamentares em apoiar o governo. Não vai daqui a defesa kamikase da superioridade dos governos de minoria. Mas reduzir a representação nacional a fundamento de – desculpem – “governabilidade” é, como dizia Zé Trindade, de amargar. A vida fora desse grande nexo é inóspita, sobretudo para nostálgicos.
E é de nostalgia que se trata, quando emergem sonhos de fusão entre PSDB e DEM. A oficialização da atração preferencial pela direita, por parte dos próceres tucanos, vale como desistência expressa do projeto de seus fundadores. A indigência intelectual e o oportunismo privam o país de um requisito fundamental para a democracia, uma oposição capaz de articular um ponto de vista alternativo. Por bons que sejam os governos, há sempre alternativa melhor. Falta ao país quem, a sério, diga isso.

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