quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Como falam os inimigos: os Diários de Victor Klemperer e a língua do Terceiro Reich

Há pouco mais de dez anos, foi publicada, pela editora Companhia das Letras, uma versão abreviada - de cerca de 900 páginas - dos Diários de Victor Klemperer, obra inestimável para o entendimento - se é que isso é possível - da experiência nazista. A edição abreviada cobre exatamante o período compreendido entre os anos de 1933 e1945. O leitor encontrará nos Diários o registro fino da progressiva implantação do nazismo na vida diária e, do ponto de vista da biografia de Klemperer, o trajeto que o levará ao encontro de sua identidade judaica, o único resíduo existencial que lhe resta diante da supressão de partes constitutivas de sua identidade: alemão, professor de literatura germâmica, combatente da Grande Guerra, etc... Em 2000, a pedido de Sergio Miceli, escrevi o ensaio que ora reproduzo no blog, para publicação no Jornal de Resenhas, então encartado no jornal Folha de São Paulo. A perenidade do texto de Klemperer justifica, a meu juízo, plenamente a exumação do ensaio que sobre ele escrevi.

Renato Lessa

No inverno alemão de janeiro de 1933, a vida do Dr. Victor Klemperer sofre inapelável inflexão. Até então, esse pacato professor titular de literatura românica da Universidade Técnica de Dresden, desde 1920, vinha dedicando-se à leitura, ao ensino e à escritura a respeito de um universo composto por personagens tais como Corneille, Montesquieu – tema de sua tese de doutorado, em 1914 -, Voltaire, Diderot, Rousseau e a miríade de figuras do delicioso século XVII francês, lindamente estudado por Paul Bénichou, em Morales du Grand Siècle e abrigo de céticos, pessimistas, irônicos e libertinos. A exposição a esse universo fez de Klemperer um sujeito híbrido.
Por um lado, ele personaliza o intelectual humanista típico, a combinar erudição histórica e literária, desconfiança diante de pretensões de compreensão exaustiva do mundo e, a despeito disso, disposição incomum de absorver informações e idéias. Ainda nessa chave, Klemperer é o que poderíamos designar como um intelectual permanente: nos seu piores momentos de infortúnio, a partir do desastre de 1933, o temor pela própria vida será invariavelmente acompanhado pelo horror diante do espectro da impossibilidade do pensamento. Esse exercício obsessivo da observação e da leitura e essa insaciabilidade cognitiva estão presentes em Klemperer na persona de um cético prazeiroso, para usar a bela auto-definição que ele mesmo nos proporciona. Como veremos, essa marca tem conseqüências decisivas na escritura klemperiana.
Mais do que humanista com afinidades céticas e cidadão pleno da república das letras, Klemperer é um alemão. Esse é o outro lado da história: o contraponto local de uma identidade que se pretende também referida à uma dimensão não-paroquial. A inflexão de 1933 representa para Klemperer sobretudo a destruição de seu mito pessoal a respeito da circunstância humana mais elementar: a que pertenço, que atributo identitário básico dá sentido a minhas escolhas e ações?
Victor não tem dúvidas a respeito disso. Veterano da Grande Guerra – uma “guerra decente”, em contraste com a que ainda viria -, portador da Cruz de Combate, protestante convertido – embora filho de um rabino: trata-se, portanto, de um alemão. Mesmo supondo que a ênfase nesse atributo, em seu diário, possa ser explicada pela ameaça externa da sua supressão pelos nazistas, é impressionante como a “Alemanha”, na economia textual de Klemperer, é o lastro, a imensa dimensão tácita, de sua vida pessoal. A família, aqui, tem papel remoto. Os irmãos são distantes, mesmo antes da fragmentação imposta pela nova diáspora. O pai é figura mais do que bissexta. A mãe jamais aparece.
A possibilidade da perda do atributo é, portanto, a maior das privações. Em abril de 1934, Klemperer horroriza-se diante do comentário de Grete, sua irmã: “Você pode convencer-se a si mesmo que é alemão, eu não consigo mais”. Abandonada, à sua sorte, no meio de uma Berlim nazificada, Grete suscita em Victor o duro comentário: “Foi tão horrível quanto típico observar de que maneira toda a alemanidade desapareceu em Grete e como ela só consegue e quer observar toda essa situação sob o ponto de vista judaico”. Adotar “o ponto de vista judaico” como referência identitária aparece, portanto, como efeito da desgermanização imposta pelo regime. Grete só pode ser “judia” porque não mais alemã.
São os preconceitos de um “alemão ordinário” que falam através de Klemperer, em suas primeiras tentativas de interpretação da barbárie hitlerista. Diante da notícia de que o comissário de justiça da Saxônia, já em 1933, ordena a retirada das bibliotecas das prisões de textos marxistas e pacifistas, Klemperer comenta: “Sob a ocupação de negros franceses estaríamos vivendo mais num estado de direito do que sob este governo”. À violência de membos das SA, no mesmo ano, contra comunistas, por meio da linguagem mussoliniana do óleo de rícino e das surras, Klemperer exibe sua perplexidade: “Se italianos fazem isso – tudo bem, nativos do Sul, animais...Mas alemães?” Preconceito, perplexidade e desencanto:
“...não acredito que ela (a Alemanha) venha a ser resgatada das mãos desse novo governo. Por sinal, acredito que ela jamais perderá a ignomínia de ter sido tomada por ele. Quanto a mim, jamais voltarei a ter confiança na Alemanha (...)...sinto mais vergonha do que medo, vergonha pela Alemanha. Verdadeiramente, sempre me senti alemão. Sempre imaginei: século XX e Europa Central são coisas bem diferentes de século XIV e Romênia”.
O regime que começa a ser imposto aos alemães em 1933 viola, portanto, todas as cláusulas da germanidade (a essa altura, Thomas Mann já tinha dito que o regime contrariava as cláusulas da humanidade). No entanto, preconceito, perplexidade e desencanto começam a dar passagem, pouco a pouco, a hipóteses distintas, em chave mais fina, ainda que ambígua: “Na Alemanha (...), essa forma de governo não é encontrada em nenhuma parte, é absolutamente não-alemã e, por isso, sem uma duração, de alguma maneira, definível. Mas no momento, está organizada com a meticulosidade alemã e, por isso, não pode ser abolida num tempo previsível (ênfase minha)”
A essência do governo é “não-alemã”, mas a sua forma e a sua efetividade trariam a marca nacional. A contribuição alemã teria, portanto, um caráter meramente prático, a serviço de valores e objetivos de origem diversa. Os diários de Klemperer – de 1933 a 1945 - podem ser lidos como o testemunho da desconstrução dessa crença. Mais do que registro de uma experiência mundana, trata-se de um exercício de sobrevivência e de auto esclarecimento. O passo inicial desse exercício pode ser encontrado em uma passagem sombriamente antecipatória, registrada em março de 1933: “O destino do movimento hitlerista situa-se inquestionavelmente na questão judaica. Não entendo porque colocaram esse ponto no programa em posição tão central. Esse ponto os levará à ruína. Mas, provavelmente, nós iremos junto”. Além da indicação do conteúdo – o anti-semitismo – a ser maximizado pela forma alemã – a “meticulosidade” -, aparece esse novo sujeito: “nós”. A inflexão de 1933 significa a judaização de Victor Klemperer.
As condições de observação, o terror, a avareza de informações e o incessante cheiro de morte, contraditados pela disposição de viver e dar testemunho, presidem uma narrativa complexa, descontínua e com impressões díspares. A única certeza de Klemperer acaba por não materializar-se: a de sua morte sob o III Reich. Em outros termos, os Diários registram uma história contada por alguém que não poderia sobreviver para contá-la. Mas, como ler essa história?
Pragmáticos e ávidos por informações primárias têm nos Diários de Klemperer – mesmo com acesso limitado à edição abreviada, de cerca de 900 páginas, e não ao texto completo - informações, descrições e impressões preciosas a respeito do experimento do III Reich e do que significou viver como um judeu naquele contexto, ainda que protegido por um casamento misto. Os diários e sua obra prima – o inédito entre nós A Língua do Terceiro Reich, publicado na Alemanha em 1947 – constituem - talvez ao lado de outra peça notável e não disponível a leitores brasileiros, O Estado SS, de Eugene Kogon, de 1946 – o que há de melhor, de instantâneo e de mais compreensivo a respeito da experiência nazista. Ainda que, no que diz respeito a Klemperer, a impressão de Franz Neumann – registrada no magistral Behemoth, de 1942 – de que o regime nazista é avesso à explicação racional, pois tratar-se-ia de um “não-regime” e sim de pura desordem pelo alto, permaneça, seus testemunhos são incontornáveis. Da mesma forma que é impossível considerar a experiência do campo de concentração sem a orientação de Primo Levi, Klemperer é nosso guia compulsório para a noite e o inferno do III Reich.
Contudo, mais do que informação, há em Kemplerer uma forma de narrar os fenômenos. O que conduz a uma questão crucial: de que escritura se trata? A resposta a isso remete a muitos planos.
No primeiro deles, e no mais geral, trata-se de uma literatura praticada por escritores in extremis, segundo sábia notação sugerida por Guy Stern. A categoria cobre um conjunto de autores – sob severas e diversas condições de risco – para os quais escrever está associado à decisão de sobreviver pela palavra como seres humanos criativos. Em uma aproximação com a literatura sobre o Holocausto, Alvin Rosenfeld, em A Double Dying: Reflections on Holocaust Literature (Bloomingtom, 1980) sugere: “A literatura sobre o Holocausto nasce...como uma espécie de milagre, não apenas como resultado de um desespero mudo, mas como asserção e afirmação de fé. Em alguns casos, talvez [até] não se trate mais do que tenacidade humana (...) diante da morte brutal. Em outros, trata-se de fé na vontade de rejeitar a obliteração final e maligna. Ou ainda: fé na força persistente e nada estranha de um ânimo para buscar e encontrar novos começos”. A chave da recusa da obliteração nos devolve em cheio a Klemperer.
Esse ato de resistência é precedido de uma decisão ética: a de seguir escrevendo e a de dar testemunho: “Seguirei escrevendo. Esse é o meu heroísmo. Prestarei testemunho, testemunho preciso”. Nos doze anos de ordálio, Klemperer não para de registrar suas impressões. A cada interrupção mais longa – como a da prisão por ter deixado a janela aberta com a luz acesa durante o blackout – segue-se meticuloso esforço de reconstituição dos dias sem acesso ao diário. A inspiração desse cronista é claramente montaigneana. É Montaigne quem aparece como autor sugerido a seus estudantes, nos últimos momentos em que conserva sua cátedra, através de deliciosa passagens dos Essais: ils vont, ils viennent, ils trottent, ils dansent... Klemperer, como Montaigne, escreve os ensaios de sua vida. Não certamente em um castelo e contando com sua memória, mas igualmente ao sabor das impressões provocadas por um mundo que não controla e mantendo-se intelectualmente em movimento. Diante da letalidade do mundo, a escritura é como que uma redenção, um abrigo ou, simplesmente, um antídoto à loucura. A escritura é, portanto, visceralemente tensa: trata-se de exercitar o prazer e a sensação de recuperar a integridade proporcionada pelo pensamento e pela ação textual – ver, por exemplo e em especial, a narrativa a respeito de sua prisão – diante de um mundo letal, no qual os assuntos dispostos à observação são antes objetos de horror do que de conhecimento.
O caráter incognoscível dessa experiência não radica apenas no horror e em sua incompatibilidade com conhecimento sistemático. Além da incerteza abrigada pela certeza do terror, há a surpresa freqüente das situações de anticlímax: tratamento gentil e humano por parte de alemães ordinários, aparentemente desconhecidos de Daniel Goldhagen, e o acaso, o puro acaso, pai, suspeito eu, de considerável porção dos eventos humanos. Klemperer é salvo da morte por sua mulher Eva, “ariana” segundo a língua do III Reich. Protegido por um casamento misto, Victor – um dos 168 judeus sobreviventes de Dresden - escapa da morte certa, em fevereiro de 1945, com o bombardeio daquela cidade, executado pela RAF. Alguma utilidade, portanto, pode ser depreendida da estupidez do bombardeio de Dresden, dizimada quando a sorte da guerra já estava decidida. De qualquer maneira, as bombas inglesas trazem o caos e com ele vida para Victor, agora livre de sua estrela amarela, arrancada de seu paletó por Eva - sempre Eva - e do acréscimo de Israel em seu nome.
Essa é, portanto, uma história de acasos e de certezas, que transita entre a sensação instantânea de estar vivo e o reconhecimento incontornável de que tudo acabará em morte. Essa é uma história narrada à moda de Montaigne, mas também de Primo Levi. Se considerarmos a brilhante imagem de Primo Levi – a da complexidade do estado de desgraça -, exposta em sua narrativa da experiência de Auschwitz, veremos que essa é a coluna, digamos, metodológica da narrativa de Klemperer. Pela imagem, Levi denota um processo no qual cada infortúnio sofrido, mesmo que momentaneamente suprimido, dá lugar ao reconhecimento e ao domínio de outro infortúnio: à supressão do frio, com o fim do inverno, sobrevinha a ditadura da fome; essa, se por acaso saciada minimamente, permite que consideremos a doença, ou outra fonte de infortúnio qualquer. A dor, mais do que cubista, revela-se sob camadas de malignidade, em uma disposição arqueológica que evoca o inferno de Dante. A história de Victor e de Eva segue a lógica da complexidade do estado de desgraça: isso faz com que todas as avaliações registradas ao fim de cada ano – de 1933 a 1944 –, e sempre a indicar que as coisas nunca estiveram piores, embora retrospectivamente sujeitas a reparos, sejam verdadeiras.
O leitor dessa história sabe como as coisas terminam. Se medianamente culto, dispõe de excelentes histórias, algumas das quais tentam explicar o inexplicável. Mas, Victor não sabe do que se trata, ignora o alcance das coisas, ouve falar imprecisamente de Auschwitz apenas em 1942 e, sobretudo, não tem a visão do final, ainda que tenha a certeza da morte. Essa é a mais radical experiência da escritura in extremis: eis aqui os ensaios da minha vida, pelos caminhos que conduzem à minha morte certa.
A decisão de escrever é condição necessária da escritura. Essa proposição trivial adquire no caso de Klemperer uma aura dramática e remete a um enigma: Victor escreve porque fica na Alemanha. Sendo assim, como explicar essa decisão de ficar?
Havia na Alemanha, em 1933, cerca de 500.000 judeus. Através de sucessivas ondas de migração – que incluem irmãos e amigos de Klemperer – e até 1941, quando a saída do país ficou impossível, apenas 1/3 permaneceu. Na posição que ocupava, a fuga do nazismo, e do país, não era para Klemperer impossível. Ao longo do diário, várias razões são apresentadas: todas elas denotam inadaptação a qualquer coisa que não fosse alemã. Klemperer constrói uma casa nova, nas cercanias de Dresden, aprende a dirigir com quase 60 anos de idade e compra um automóvel, carinhosamente designado como “bode velho”. Seus movimentos indicam a direção de um enraizamento, em um mundo que a todo momento o define como “personalidade problemática”.
Como explicar, então, esse apego? Kurt Schwitters, artista plástico alemão e um dos criadores do dadaísmo, sai da Alemanha em 1933 e, mais do que isso, decide abandonar a língua. Em seu exílio inglês, Schwitters não mais utiliza a língua natal, pois a crê contaminada pelos símbolos da “nova ordem”. Klemperer representa o negativo da atitude de Schwitters. O III Reich é, antes de tudo, uma linguagem. Antes de Wittgenstein, Klemperer está a sugerir que sendo uma forma de vida, o III Reich é um contexto linguístico e semântico. Talvez seja exagero dizer que fica na Alemanha para estudar a linguagem do III Reich. Isso pode soar como falácia: post hoc, ergo propter hoc. No entanto, se esse não é o motivo, creio ser essa a razão. A chave dessa suposição encontra-se plenamente apresentada na obra-prima A Língua do Terceiro Reich, de 1947 .
O apego a essa manifestação do regime resulta, ironicamente, das proprias supressões que ele impõe. Privado do acesso a bibliotecas, expulso de sua casa e da possibilidade de exercer seu ofício em bases normais, a língua de seus inimigos adquire centralidade. Klemperer, assim, apega-se a algo que o regime não pode suprimir ou a ele negar: a sua linguagem. Tudo o mais pode ser retirado: vida, bens e dignidade. Mas, sob condição de oferecer a Klemperer uma coleção notável de fenômenos: as palavras, as locuções e, ao fim, os sons que estruturam a nova forma de vida. Victor sobrevive para observar como falam os inimigos, para revelar a intimidade e os efeitos de seus jogos de linguagem. Seus textos concedem ao leitor o privilégio inestimável de testemunhar nossa vitória final sobre o nazismo.

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