domingo, 15 de agosto de 2010

Estado Providência

Renato Lessa

Há dois anos, em agosto de 2008, publiquei este artigo no suplemento Aliás, no jornal Estado de São Paulo. O caso foi vergonhosamente esquecido e os culpados virtualmente anistiados. Para marcar os dois anos do trucidamento dos jovens do Morro da Providência, republico no blog o artigo.


O filósofo francês François Lyotard disse, em uma certa altura, que o Holocausto assemelhou-se a um terremoto que acabou por destruir os instrumentos de mensuração e detecção de terremotos. Ainda que nosso horizonte imediato de malignidade não se compare ao do extermínio brutal e cuidadosamente perpetrado pelos nazistas, há algo a reter na idéia de um desastre que corrói a própria possibilidade de compreendê-lo.

No calor dos acontecimentos iniciados pela ação do Exército no morro carioca da Providência e que culminaram com o trucidamento de três jovens, a opinião circunstanciada dos especialistas foi solicitada, como recurso de elucidação daquilo que a olhos, vá lá, normais aparecia como inexplicável. Entre as tentativas de elucidação, uma em particular chamou-me a atenção, pois viria a ser repetida por outros especialistas e por colunistas de notória expressão conservadora. Na noite do dia do enterro dos três jovens, um veterano especialista no tema da violência atribuiu – em entrevista televisiva – o evento a uma questão de treinamento (sic). Em termos diretos: o Exército não foi treinado para lidar com a segurança pública, logo, por mais lamentável que seja, o episódio inscreve-se na ordem das possibilidades.

Não desejo prosseguir com essa referência em chave assim tão pessoal, mas a reação de meu filho de 18 anos, a meu lado, abriu-me uma janela de reflexão. Ao ouvir a sábia explicação, disse meu filho em sua linguagem especial de rubro-negro carioca, a qual aqui penso traduzir: “eu não fui treinado para lidar com segurança pública, mas não entregaria três seres humanos para a morte certa, nas mãos de assassinos notórios”. Com efeito, a observação possibilitou o desfrute da elevação existencial que sobrevém com a indignação: acabam de trucidar três jovens inocentes e o sujeito põe-se a falar de “treinamento”.

Os instrumentos de mensuração de desastres sociais – e seus operadores -parecem ter sucumbido aos desastres. Há um evidente hiato entre possíveis despreparos operacionais, ou lapsos de treinamento, por parte dos chamados “agentes da lei” e aquilo que seres humanos se permitem fazer com outros seres humanos. E é disso, primariamente, que se trata. Uma ciência social sem espírito está, às cegas, a procura de regras e instituições para retificar a vida social. A boa regulação e o bom desenho institucional acabarão por nos redimir, dizem-nos. Claro está que uma nova escuta do social se impõe, que seja capaz de reorientar nossas observações e fazer do tema e do lugar do sofrimento humano o núcleo sobre o qual toda a atenção deve incidir. Há muitas camadas no evento em questão a considerar, antes que nos preocupemos com problemas de “treinamento”.

Antes de tudo, a primeira camada do evento, a do registro do nome de cada uma das vítimas, antes que caiam no abismo infinitesimal da numeração estatística: Wellington Gonzaga Costa, 19 anos; Marcos Paulo da Silva, 17 e David Wilson Florêncio da Silva, 24. Os três foram detidos no Morro da Providência por onze militares do Exército brasileiro, chefiados por um tenente e, depois de um périplo que incluiu maus tratos imediatos e uma ida ilegal ao quartel, foram entregues a traficantes de uma área “inimiga”, que procederam ao esperado. Um dos primeiros impulsos da cobertura jornalística consistiu em informar-nos a respeito da folha penal de cada um dos vitimados, como que a sinalizar os limites adequados de nossas reações. Omito, aqui, tais dados, por absolutamente irrelevantes. O que importa registrar é que, em um intervalo de poucas horas – da detenção à morte, os jovens só poderão ser descritos por aquilo que os laudos da autópsia revelariam do que foi imposto a seus corpos. São seus laudos cadavéricos que hoje servem de suporte para a notoriedade que acabaram por obter, do único modo que lhes foi facultado.

Wellington foi severamente torturado, com golpes de madeira e barras de ferro; levou 26 tiros por todo o corpo – tiros nas mãos, pés e joelhos e em um olho -; teve ainda, durante o suplício, os braços amarrados e as coxas perfuradas por um vergalhão de ferro. David foi igualmente torturado e baleado com 26 tiros por todo o corpo; suas pernas foram quebradas e seu tormento arrastou-se por uma hora. Marcos levou apenas um tiro, que lhe perfurou o pulmão e a aorta, mas foi arrastado pelos cabelos, pelas vielas do Morro da Mineira. Um experimentado legista – testemunha do que há de mais radical na dor humana – comentou: os três jovens sofreram barbaramente antes de morrer. É esse o ponto nuclear do evento: as marcas finais fixadas nos corpos dos três supliciados.

A câmara de gás de Auschwitz ainda hoje conserva em suas paredes as marcas das unhas dos que ali foram eliminados do mundo. Hoje se apresentam como pormenores e fragmentos que interpelam e obrigam a imaginar o complexo e imenso horror do campo de extermínio. Pequenos arranhões sobre as paredes são suficientes para que toda a experiência do horror seja evocada. Sabemos bem ler aquela partitura. O que se nos impõe, agora, é aprender a ler os laudos de autópsia e de corpo de delito de jovens idênticos aos vitimados do Morro da Providência. Na impossibilidade de escutar seus gritos e pedidos de ajuda, o que dizem seus parentes, amigos e vizinhos deve ser tomado como uma arma de elucidação do que se passa nos meandros mais sombrios e letais da vida social.

Os relatos falam-nos de uma ocupação militar, suscitada por uma fétida aliança política, entre o Presidente da República e seu candidato a prefeito do Rio de Janeiro. O rebatimento da aliança sobre a área do Morro da Providência deu-se sob a forma da participação do Exército em obras de recuperação de fachadas e telhados. Com a graciosa oferta de mão de obra, sobreveio a ocupação militar, sob pretexto de dar segurança aos operários. No enterro dos rapazes, a comoção generalizada não inibiu a percepção adequada da rede de causalidades que tornou possível o evento em questão: Lula, o Exército e o senador Crivella foram citados de modo pouco carinhoso, para dizer o mínimo. O que esperar de uma aliança desse tipo? Querem o que? (Crivella, aliás, não fosse tudo isso, mereceria ainda assim severo castigo eleitoral pelo nome magnífico de seu programa, designado como “cimento social”).

Dos vizinhos, ouvimos o testemunho do toque de recolher, das repetidas revistas ilegais, das ameaças com armas e da menção a casos precedentes de entrega de “elementos” suspeitos a milícias e a traficantes. Melhor do que parafrasear, é ouvir o que diz uma mulher de 55 anos: “Eles (o Exército) fazem igual à polícia. Revistam nossas bolsas, colocam os moradores na parede, olham a mochila de crianças, jogam spray de pimenta”. No caminho para o enterro dos jovens, a bandeira brasileira que havia sido fincada pelos ocupantes foi arrancada pelos moradores que ali pretendiam por um pavilhão de cor mais adequada. Negra, por certo. O pavilhão foi reposto pelos soldados e hoje, acrescenta à sua simbologia histórica o fato de indicar quem manda no pedaço.

Duvido que um dos moradores ouvidos tenha lido o filósofo italiano Giorgio Agamben, famoso, entre outras coisas, por declarar que vivemos todos – e em toda parte - em um “estado de exceção permanente”. Mais contido, o morador sem metafísica afirmou: “quarenta anos depois, voltamos à ditadura”. Por experiência pessoal, e não por pirotecnia intelectual, o morador introduz um aspecto central do drama: depois da evidência incontornável das marcas impostas aos corpos dos vitimados, segue-se o relato da experiência de viver sob estado de exceção, de suspensão de regras de previsibilidade e de proteção coletiva e individual.

Depois de vinte anos de vida democrática, o sistema de segurança e controle da ordem social parece ser irreformável. Os piores desenhos de política parecem encontrar abrigo perfeito na mão de psicopatas, tal como o infeliz que pretendia dar um “corretivo” e “apenas uma surra” nos “elementos”. Parece não haver alternativa imediata a não ser a resistência popular aos espasmos despóticos. As mães dos jovens do Morro da Providência parecem ter entendido isso, da maneira mais dolorosa possível. O martírio de seus filhos valeu como um terrível ato de elucidação. Stabat mater dolorosa...lacrimosa...

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