domingo, 3 de fevereiro de 2013

1513-2013: uma aproximação ao Experimento Maquiavel

O tema da complexidade parece ser, hoje, apanágio das assim chamadas ciências exatas. De fato, complexos são os sistemas orgânicos e, por sua vez, os inorgânicos nada lhes ficam a dever. Tanto uns como outros são avessos à explicação monocausal e, com alguma frequência, manifestam-se de forma caótica, desafiando a velha crença da modernidade de que a estabilidade das causas é garantia da estabilidade dos efeitos. Há exatos quinhentos anos, na cidade de Florença, Nicolau Maquiavel, homem público e intelectual, concluiu um livro com o título de O Príncipe. Não é exagero dizer que antes dos filósofos naturais – nome que na altura se atribuía ao que hoje definimos como cientistas – terem dado conta da complexidade presente nos fenômenos naturais, o livro introduziu na cultura ocidental o que poderíamos designar como o fato da complexidade, como constitutivo das relações entre os humanos. O pequeno livro foi dedicado ao “Magnífico Lorenzo de Medice”, governante fiorentino e membro da família mais poderosa da cidade. A dedicatória pode sugerir a olhos precipitados um vínculo temático e estilístico entre a obra – ou o “pequeno volume”, tal como o designava Maquiavel – com o estilo literário e político então conhecido como “espelho de príncipes”. O estilo tinha como traço central a enumeração, com frequência por parte de um autor protegido ou patrocinado para tal fim, das qualidades necessárias para o governo de um príncipe virtuoso. Quando não tendia para a bajulação aberta, o estilo, procurava fixar uma coleção de bons preceitos diante dos quais o governante deveria se espelhar. Já na dedicatória a Lorenzo, Maquiavel indica a natureza distinta de seu empreendimento. Embora dedicado a um príncipe, a obra parte de uma curiosa e inovadora premissa. Como o que desculpando-se pela ousadia de dirigir-se a um príncipe como Lorenzo, Maquiavel – que se apresenta como “homem de baixa e ínfima condição”- sustenta que “para conhecer a natureza dos príncipes é preciso ser povo”, assim como “para bem conhecer a natureza dos povos, é preciso ser príncipe”. A natureza do governo, portanto aparece não como fundada na consulta principesca de um catálogo de preceitos morais e religiosos, mas emerge da interação sempre complexa e um tanto imprevisível entre os “grandes” e os “pequenos”. Se a natureza de um povo é constituída pela direção política à qual se submete, o significado do governo do príncipe é melhor revelado pela observação que sobre ele fazem seus súditos, ou suas vítimas. Não sendo, pois, um “espelho de príncipes”, do que trata, afinal, este livro, um dos mais importantes da cultura ocidental moderna? O tema fundamental de O Príncipe é o da complexidade da política e, por extensão, da história. É isto que corre como pano de fundo para o tratamento de diferentes regimes políticos – os principados –, que têm em comum, ao contrário das repúblicas, a presença de sistemas monocráticos e de concentração de soberania. Em obra iniciada em 1513 e concluída em 1517, os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Maquiavel ocupou-se das repúblicas, tema de grande ancestralidade. A complexidade dos principados não deriva tanto da diversidade de suas formas: há, por certo, os hereditários, os tomados por conquista, os novos, os eclesiásticos, todos eles com características próprias, desafios aos governantes e expectativas dos súditos. Mas, pode-se dizer que há um suporte de complexidade básica que subjaz à variedade das formas políticas, e ele diz respeito do lugar ocupado pela política nos assuntos humanos. Se este é o foco, Maquiavel não pode, por outro lado, ser tomado como um “pensador político”, no sentido de um “especialista” em política. Sua sensibilidade para fenômenos de natureza política foi envolvido por um conjunto amplo de questões e formas de conhecimento, tais como a antropologia – ou um exame da condição humana -, a história, a cosmologia e a filosofia. Para começar, a própria ideia de política – que comparece ao texto não como termo, mais como problema – deve ser clarificada. Os padrões estabelecidos pela Antiguidade – presentes na democracia ateniense e na república romana – fizeram da ideia de política algo que pode ser definido com uma prática de deliberação pública a respeito de assuntos de interesse comum. Se fossemos representar tal prática em termos gráficos, uma linha horizontal seria suficiente. É essa representação que decorre da própria noção grega de isonomia política – ou de equivalência dos cidadãos na vida pública -, presente, como ideal nas repúblicas. A política no experimento de Maquiavel aproxima-se de mais da linha vertical do que da horizontalidade dos antigos. Aqui, trata-se de mostrar que política, na abertura da modernidade, supõe exercício de dominação de um soberano sobre seus súditos, ou dos grandes sobre os pequenos. A nostalgia deliberativa da democracia grega e da república romana cede lugar a um experimento que tem no exercício da dominação um princípio de vertebração da sociedade, sem o qual ela colapsa. Em outros termos, o que torna a sociedade possível é o exercício da soberania: há ordem ali onde se faz clara a determinação de quem manda e de quem obedece. É este o sentido da política: instituir na vida social um fundamento implicado no próprio exercício do poder. O valor e a necessidade desse fundamento podem ser dados pela antropologia de Maquiavel, apoiada, por sua vez, em uma cosmologia precisa. Os homens habitam, tal como no sistema aristotélico-ptolomaico, o domínio sublunar, distinto do padrão cosmológico do mundo supralunar. Este, de acordo com Aristóteles, é constituído por movimentos naturais, perpétuos e necessários. Perfeição e necessidade são seus atributos centrais, e o conceito de “movimento natural”, egresso da física aristotélica, é fulcral: trata-se do trajeto de um corpo na direção de seu lugar natural. Pois bem, o cosmo aristotélico, em seu estrato supralunar, é o espaço por excelência dos movimentos naturais. “Movimentos violentos”, por oposição, são aqueles que dirigem corpos a lugares não-naturais – ou lugares que não são seus por natureza -, o que pressupõe a mediação de um agente que introduz no mundo um princípio de desordem e indeterminação. O cosmo de Maquiavel, tal como ensinado em seu tempo pelos aristotélicos da cidade de Padua, possui tal fisionomia. O mundo sublunar, mesmo que marcado por regularidades físicas, é o lugar natural dos movimentos não-naturais, pela simples razão de que é apenas nesse estrato inferior que podemos encontrar os humanos. A cosmologia dá, assim, passagem à antropologia, e vemo-nos diante da representação maquiaveliana da condição – ou natureza – humana. Não são auspiciosas as imagens que disto se seguem. Não é que os humanos sejam maus por natureza, mas são erráticos nas suas paixões, desejam com frequência melhorar sua condição, são capazes de gestos de grandeza, mas podem odiar, invejar e abrigar ambições descabidas; no limite, são letais. Em uma palavra, não há na natureza humana um substrato mínimo de estabilidade; os humanos devem ser contidos de fora para dentro, até mesmo para que aprendam a conter-se de dentro para fora. Não há em Maquiavel intenção condenatória: para ele essa antropologia é um fato da espécie e manifesta-se por toda parte e por todos os tempos. Se quisermos é este mesmo um princípio de estabilidade: a instabilidade permanente do comportamento humano. Os humanos não cabem dentro de si. Espinosa e Freud bem entenderam, cada um em seu tempo, as implicações da antropologia de Maquiavel: para o primeiro a potência da multidão excede sempre as formas institucionais que a procuram conter; para o segundo, por mais que a civilização exerça sobre nós sua disciplina, a energia pulsional segue vigente e igualmente excessiva. Pois bem, a política é o remédio para a condição humana sempre instável e falível. Tal instabilidade, contudo, tem como um de seus princípios o fato de que tudo que é valioso para os humanos é objeto de inveja e disputa. Tal princípio não pode deixar de afetar a própria política, tornando-a, desta forma, igualmente instável. O próprio lugar do príncipe está, por definição, sempre em disputa; o príncipe não é, além disso, uma exceção antropológica. Ou seja, o princípio de instabilidade é responsável pela introdução continuada de instabilidade. A política é tudo, menos estabilidade consolidada. Falar de política implica pôr-se no universo existencial da incerteza. Este é o mantra da “ciência política” maquiaveliana. Nada mais distante de Maquiavel – e de sua obra mais célebre – do que a pretensão de que foi o fundador de uma ciência, capaz de tornar os fenômenos políticos explicáveis e previsíveis. Basta levar em conta o papel que Maquiavel atribuiu à fortuna – ou o conjunto de fatores fora de nosso alcance, proporcionados pelo acaso – nos assuntos humanos. Para ele, nada menos do que a metade de nossas ações é pautada pela fortuna. Isso vale tanto para o cidadão comum – que se agarra às rotinas do hábito como subterfúgio ao assédio do acaso – como para o príncipe, acossado sempre por inimigos e por amigos invejosos e inconfiáveis. Para o príncipe não há como escorar-se no hábito. O que se lhe impõe, na perspectiva de conservar e ampliar seu domínio, é a ação; uma ação que, diante do imponderável – da imprevisibilidade – da fortuna, exige uma qualidade específica, sem a qual tudo colapsa, a virtù. Não se trata aqui da virtude pregada aos príncipes pelos “espelhos de príncipes”. Não há catálogo de virtudes morais e de preceitos religiosos que nos ensine a lidar como a política tal como ela é, é o que Maquiavel está a dizer. É a capacidade de extrair da fortuna – da indeterminação da vida e da volatilidade da política – um curso de ação positivo. Em linguagem corrente, trata-se de fazer do acaso uma estrutura de oportunidades para novas opções e para a sobrevida e ampliação da capacidade de exercer poder. Quem detém essa capacidade, tão essencial para a política? Ninguém por direito divino ou de casta. A capacidade política – um dos sentidos da ideia de virtù – é sociologicamente cega: ou seja, não há em Maquiavel nada que a defina como monopólio de aristocratas; um condottiere de extração popular bem pode detê-la. Por fim, Maquiavel estabelece premissas importantes para o conhecimento da política. Com efeito, Francis Bacon, um dos heróis da ciência moderna, nele reconhecerá uma inovação teórica fundamental, a de proceder segundo princípios indutivos, tomando por base os exemplos históricos. A política – assim como a história – é vulnerável às artes do acaso, mas pode ser conhecida, em alguma medida. Assim como a natureza se abre à observação do naturalista, os exemplos históricos constituem a “natureza” do historiador Maquiavel. Aprender com os exemplos, com o que fizeram – para o bem ou para o mal – ao longo do tempo soberanos e diversos potentados, verificar as condições nas quais decisões foram tomadas, seus efeitos, etc... Tudo isso forma um grande catálogo de exemplos aplicáveis diante de situações semelhantes. Empreendimento imenso, ilimitado e inacabável. Mais do que isso, sempre vulnerável à imperita coleta de exemplos e à infeliz interpretação. Tudo isso agravado pelo fato de que o conhecimento político é uma exigência da ação política; ele tem o tempo da própria ação, o que lhe imprime imensa falibilidade. Para entender a política é fundamental ler o livro da História. Mas ao lê-lo não há qualquer garantia de infalibilidade. A ciência da política é uma tentativa de conhecimento sistemático daquilo que não se dá a conhecer sistematicamente. É esse o legado de Maquiavel e a sua utopia para o conhecimento humano. Renato Lessa (Publicado no suplemento SobreCultura, da revista Ciência Hoje, em sua versão online - CHOnline -, em 31 de janeiro de 2013)

Nenhum comentário:

Postar um comentário