quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Filosofia Política: para quê?


Renato Lessa[1]


A “Política”, enquanto campo de conhecimento, mantém uma relação de identidade nominal com o objeto sobre o qual se debruça, qual seja, a política desprovida de aspas. Em termos diretos, trata-se, para o praticante da “Política”, de estudar a política, em uma convergência entre nome e coisa há muito estabelecida por Aristóteles, em duas de suas obras primas, a Política e a Ética a Nicômano, nas calendas gregas de tempos menos aziagos. Tal redundância confere à reflexão política – suspendamos agora as aspas – um lugar singular entre as disciplinas que, de uma forma canônica, compõem o conjunto das assim chamadas ciências sociais.

Com efeito, se nada proíbe a antropólogos e sociólogos o exercício de uma auto-observação profissional e sistemática a respeito de suas próprias disciplinas - materializadas em uma “Antropologia da Antropologia”, ou em uma “Sociologia da Sociologia” – é impossível afirmar que existam domínios, designados pelos termos “sociologia” e “antropologia”, que se imporiam como objetos obrigatórios a ser considerados pelas disciplinas que portam os mesmos nomes. Em suma, nestas áreas, nada há de semelhante à sentença que sustenta que “o objeto da ‘Política’ é a política”. Em termos mais diretos, nenhum antropólogo sustentará que a “Antropologia” define-se pelo estudo de algum objeto designado pelo termo antropologia, assim como seria assombroso encontrar sociólogo que defenda que a “Sociologia” o faça com relação a algo que se designe como sociologia. Já vi na vida coisas muito estranhas, mas não a tal ponto.

Ao considerar essas diferentes, digamos, disciplinas – Antropologia, Política e Sociologia – não tenho por meta estabelecer prioridades. Sei que as crenças profissionais dos praticantes destes campos incluem grande dose de etnocentrismo, vá lá, científico. Não sou praticante deste jogo, e reservo minha carga inevitável de etnocentrismo para outros assuntos. Meu argumento, neste pequeno ensaio, visa tão somente estabelecer distinções, e não hierarquias de relevância, com vistas a poder dizer duas ou três coisas a respeito das particularidades do conhecimento político.

Se algum juízo de vantagem puder ser afirmado, este parece favorecer antes a Antropologia e a Sociologia, e não a Política. A razão é simples. Por crer na identidade plena com seu objeto, a Política, enquanto campo reflexivo, dá como certa e indisputada a existência de objetos políticos que, por definição, caem sob sua jurisdição. Não é por outra razão que o “politólogo médio” tende a especializar-se no estudo das instituições políticas. Tal inclinação, menos do que natural, resulta de uma crença profissional: a de que politólogos estudam “objetos políticos”.

Nossos colegas antropólogos e sociólogos tendem a representar seus campos cognitivos mais como perspectivas de observação do que como domínios disciplinares, detentores de jurisdição preferencial sobre certos objetos. É mesmo o caso de ler – ou reler – a pequena obra prima de Peter Berger, Invitation to Sociology, sabiamente traduzida entre nós sob o título de Perspectivas Sociológicas (Petrópolis: Editora Vozes, 1976). Ali encontraremos, para além das razões da vocação específica do cientista social, a defesa da ideia de perspectiva, como parte inerente ao processo de conhecimento social. Isto significa dizer que qualquer objeto ou assunto pode, em princípio, ser enquadrado a partir de perspectivas sociológicas ou antropológicas, sem que os objetos desta, digamos, ação perspectivada sejam inerentemente “sociológicos” ou “antropológicos”. Que o diga o mais brilhante dos sociólogos portugueses contemporâneos, José Machado Pais, autor de pungente e inspirado estudo sociológico sobre a solidão, com base em observações de pet shops, lavanderias noturnas, bêbados, vagabundos, imigrantes e moribundos (ver Nos rastos da solidão: deambulações sociológicas, Porto: Ambar, 2006).

Os politólogos – e refiro-me aqui aos “politólogos médios” ou típicos, treinados nos laboratórios intensivos de institucionalismo e de mensuração – recusam tal ideia de perspectiva e aderem à crença de que há objetos políticos por natureza. Parlamentos, partidos, políticas públicas, eleições, entre outros, constituem seus objetos naturais. E não vai aqui qualquer juízo quanto à qualidade do que faz a “Política” – ou Ciência Política – orientada para estudos institucionais e muito menos quanto à relevância indisputada dos temas. Há excelentes trabalhos institucionalistas, de leitura recomendável e útil para o estudioso das ciências sociais e da história. O que aqui está em questão são as características do paradigma, e não a qualidade específica de pesquisas particulares. Um paradigma que, com frequência, reduz a riqueza e a variedade da vida social e da ação humana a “variáveis” estritamente políticas e institucionais e a cálculos estratégicos. Houve mesmo, por exemplo e para citar um paroxismo, quem interpretasse o desastre brasileiro de 1964, com a queda de João Goulart, como decorrente de uma crise no interior do parlamento.

A desvantagem do conhecimento político, no que diz respeito à naturalização de seus objetos, possui, no entanto, fortes compensações. A principal é a da natureza normativa – isto é, prescritiva ou propositiva – desta forma de conhecimento. Mesmo politólogos mais aderidos à cultura intelectual da positividade científica, e do respeito contrito à vida como ela é, não escapam do abismo da prescrição. Não há, por exemplo, especialista em sistemas eleitorais que não tenha o “seu”, aquele de sua predileção. Eu mesmo, quando frequentei este campo, andei a tecer loas ao sistema eleitoral praticado na República da Irlanda e na Câmara Alta da Tasmânia! Cheguei mesmo a argumentar das vantagens de sua adoção no Brasil. Tal grau de voluntarismo opinativo não será encontrado, por exemplo, entre etnólogos que se ocupam da análise de sistemas de parentesco em sociedades “tradicionais” ou “primitivas”, tal como se dizia antigamente. Não conheço nenhum especialista em sistemas de parentesco que tenha iniciado movimentos de reforma das relações de parentesco, nas sociedades por ele estudadas. Imaginem só, a bela proposta que disto resultaria: “sugiro alterar o fundamento matrilinear da sociedade Canela, com a correspondente adoção das regras patrilineares dos Mundukuru”. Seria uma bela peça de humor, mas, de certeza, péssima Antropologia.

Como explicar e – o que é mais interessante – justificar o componente normativo do conhecimento político? A resposta exige menção a outro traço distintivo da Política – como campo reflexivo – com relação às demais Ciências Sociais. Enquanto a Antropologia e a Sociologia são de extração recente, ou seja, começam a constituir-se a partir de meados do século XIX, a “Política” resulta de um movimento reflexivo contemporâneo à invenção da política como atividade humana. Em outros tempos, pensamento político e ação política foram, em sua origem, expressões culturais de um experimento – ocorrido entre os gregos durante o século V anterior à Era Comum – marcado pelo estabelecimento de uma distinção entre Physis – Natureza – e Nomos – regra ou lei. Tal distinção é crucial para o estabelecimento de um âmbito político, no qual a ação humana “faz diferença”, ao contrário dos desígnios da Natureza, sobre os quais tal ação não é “causa eficiente” ou motora.

A distinção foi posta inicialmente pela filosofia desenvolvida pelos sofistas, como depreendemos do que restou de pensadores tais como Protágoras, Górgias e Antifonte. Mas encontraremos a oposição, de forma inequívoca e direta, em Aristóteles, em vários aspectos um “inimigo” dos sofistas. É o que pode ser inferido de sua definição – posta na Ética a Nicômaco, uma obra-prima do engenho humano – da ideia de deliberação como atividade humana que incide sobre assuntos incertos e cujos efeitos são indeterminados. Não é acidental que o tema da deliberação tenha sido central para a democracia ateniense: ali tratava-se de decidir sobre assuntos que não são estabelecidos por forças naturais, mas pelo engenho humano da política.

Política, nesta chave originária, significa deliberar e decidir, de modo coletivo, a respeito de questões de interesse público. Impossível imaginar que deliberações possam dispensar reflexão a respeito do que se está a deliberar. Pois bem, é justamente tal reflexão, inerente ao exercício da deliberação, que se apresenta como constitutiva de um hábito de pensamento – a “Política” – cuja constituição é simultânea à invenção de seu objeto – a política. Como se pode ver, trata-se de matéria muito antiga e, por isso mesmo, sujeita a inúmeras ressignificações ao longo do tempo. Hoje o que retemos desta forma originária da política – como prática humana – é, na melhor das hipóteses, residual. Mas, por outro lado, há uma característica da “Política” que se mantém, e que é condição mesma para a sua consistência: a combinação entre realismo – ou seja, esforços cognitivos para considerar o que se passa na vida política – e alucinação – ou seja, a imagem de como o mundo poderia ou deveria ser. 

Temo suscitar entre os mais prudentes algum dissabor, ao sustentar que na oposição entre realismo e alucinação é a segunda faculdade do espírito humano que comanda a primeira, e não o contrário. Em outros termos, os gregos, quando deliberavam em suas assembleias, cuidavam de duas dimensões distintas, porém combinadas, da política. Ao mesmo tempo em que discutiam “o que fazer”, com as implicações práticas que disto decorrem, tratavam de deliberar a respeito do “por que” ou “para que” fazer, o que implicava incluir no campo da reflexão política questões absolutamente cruciais, hoje um tanto perdidas de vista, dados os hábitos mentais cientificistas que vigoram: que sociedade queremos? O  que é uma vida boa? O que é o justo? Como vemos, tais questões vinculam a “Política” ao campo maior da Filosofia, o que justifica dizer que o conhecimento politico é “filosofia política”. Esta tem sido, ao longo dos séculos, abrigo de esforços de entendimento daquilo que se passa no mundo da vida como ela é; esforços, contudo, orientados por crenças em desenhos de mundos possíveis e imaginados.

A filosofia política ocupa-se do campo do possível – ou de universos possíveis -  e este é, por definição, mais – muito mais – amplo do que o universo finito da nossa experiência prática. Em grande medida, são os efeitos deste infinito em nós que nos orientam para lidar com os dilemas da nossa inapelável finitude. Bem disse, certa altura, o cineasta e ensaísta alemão Alexander Kluge: para sermos realistas, devemos ser irrealistas. Disse-o no século XX. Muito antes dele, Jean-Jacques Rousseau falou-nos de uma igualdade originária e natural que, segundo ele próprio, jamais existiu, não existe e não existirá, mas que, a despeito disto, dela é imperativo ter uma noção precisa para melhor avaliarmos nossa condição presente.

É mesmo espantoso: ter uma noção precisa a respeito de algo que não existe, para que melhor compreendamos o que existe. Ninguém melhor do que Rousseau – em seu magnífico Discurso sobre as origens e os fundamentos da desigualdade humana, de  1754 - fixou a ideia de que sem a ajuda da alucinação, não há conhecimento possível do mundo. Ponto para Kluge e para Rousseau, mas nada melhor do que a precisão poética de Paul Valéry para tornar o argumento ainda mais aliciante: o que seria de nós sem o socorro do que não existe?





[1] . Professor Titular de Teoria Política do Departamento de Ciência Política da UFF; Pesquisador 1 A, do CNPq; Coordenador Acadêmico do Observatório dos Países de Língua Oficial Portuguesa – OPLOP/Uff – e do Laboratório de Estudos Hum(e)anos – L(E)H/Uff; Presidente do Instituto Ciência Hoje; Investigador Associado do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa e do Instituto de Filosofia da Linguagem, da Universidade Nova de Lisboa. Membro da Ordem Nacional do Mérito Científico (MCT/Brasil).

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