terça-feira, 14 de outubro de 2014

Discurso de Abertura da 30a Feira do Livro de Gotemburgo (Suécia)
Gotemburgo, 25 de setembro de 2014

Exma. Sra. Maria Kallsson, Diretora da Feira do Libro de Gotemburgo
Exma. Sra Anna Falck, Diretora Executiva da Feira do Libro de Gotemburgo
Exmo. Sr. Bertil Falck, Fundador da Feira do Libro de Gotemburgo
Exmos. Srs. Representantes do Governo Sueco e da  Cidade de Gotemburgo
Exmos.  Membros da Delegação Brasileira
Senhoras e senhores,

Em nome da Exma. Ministra da Cultura do Brasil, Sra. Marta Suplicy, quero expressar nossa profunda gratidão pela escolha do Brasil como Convidado de Honra, para a 30a Feira do Livro de Gotemburgo. É um privilégio para o Brasil – e para sua literatura em particular – usufruir de tal condição em um evento de tal prestígio.
O convite, estou convencido, é um sinal inequívoco do reconhecimento da qualidade e da importância da literatura brasileira no cenário internacional.  Penso que ele exprime, ainda, uma aguda percepção dos esforços continuados do Ministério da Cultura brasileiro, através da Biblioteca Nacional, de fomentar a crescente internacionalização da literatura brasileira. A participação brasileira em eventos internacionais de grande importância – tais como as feiras de Frankfurt e Bologna (2013) e o Salão de Paris (2015), nos quais o Brasil figura como convidado de honra – e o Programa de Tradução de Autores Brasileiros, executado pela Biblioteca Nacional, são evidências do apoio aqui mencionado.
 Trata-se de uma ação que, sem dúvida, contribui para maior abertura do mercado internacional para autores brasileiros. Estou convencido, no entanto, de que se trata de muito mais do que isso.
Há muitas formas possíveis de cooperação e interdependência entre as nações. Usualmente, tais formas baseiam-se em interesses econômicos mútuos, comércio e razões estratégicas e  geopolíticas. A despeito do papel central ocupado por tais dimensões – por razões bastante compreensíveis – parece-me vital “investir” naquilo que poderia ser designado como um “padrão de interdependência imaterial”, baseado em programas e ações no campo da cultura, da arte e do pensamento. No campo, para ser mais preciso, da literatura, que reúne e exige como condição de possibilidade todas aquelas dimensões.
Agendas imateriais decorrem de atos de imaginação. Tais agendas contêm coleções de – para usar uma expressão do escritor francês Paul Valéry - “coisas vagas e imprecisas”, fundamentais para a existência dos humanos. O mesmo Paul Valéry perguntou: “O que seria de nós sem o socorro do que não existe?
A literatura emana dessa inclinação para mundos possíveis e imaginados. Ao fazê-lo, e tal como sustentou o escritor italiano Italo Calvino, a literatura se oferece como forma de conhecimento: o conhecimento de coisas não existentes – ou ficcionais – que afetam nossa própria existência no mundo, digamos, real.
A força imaginativa da literatura brasileira pode ser representada de modo fino e fiel por meio das intuições de Valéry e Calvino. Mas, para acrescentar ao argumento um sabor brasileiro, basta recordar o verso do grande poeta maranhense Ferreira Gullar, de seu poema Traduzir-se:
Uma parte de mim pesa, pondera. Outra parte delira.
Podemos imaginar uma colagem poética na qual o verso de Gullar apareça associado a um fragmento de outro extraordinário poema (Sentimento do Mundo), cujo autor é outro grande poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade:
Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.
Já que a poesia lida com a imaginação, é possível imaginar poemas não existentes, tais como a colagem que acabo de sugerir. Por meio dela, dá-se a ver o ímpeto projetivo e criador – da arte na direção da existência – que a prática literária – em suas diferentes formas – pode assumir.
Nos esforços desenvolvidos com vista a maior internacionalização da literatura brasileira creio ser importante enfatizar que o poder imaginativo da literatura brasileira é responsável, em grande medida, pelos utensílios intelectuais que dispomos para compreender o Brasil, uma tarefa nada simples. Pela força de sua qualidade formal, a literatura brasileira ajuda-nos a perceber, ainda, seus aspectos intrínsecos, como prática estética e imaginativa. Trata-se, pois, de um processo pelo qual a literatura nos acompanha em nossas indagações diante do mundo, ao mesmo tempo em que estabelece padrões de gosto estético, ao permitir a apreciação da forma em si mesma como objeto de desfrute.
A agenda imaterial que mencionei conecta-se a este entendimento da literatura: a literatura não reflete a realidade; ela afeta a realidade. Ela o faz – quase sempre sem propósito (e por isso deve ser absolutamente livre) – ao atuar sobre a sensibilidade dos leitores, sobre seus mapas cognitivos e valorativos, afetando, por essa via, seus modos de existência. Trata-se, pois, de coisa séria.
Essa é a experiência de um país no qual clássicos tais como Dom Casmurro, Os Sertões, Vidas Secas, Grande Sertão: Veredas, entre outros, agiram no sentido de formar nossos aparelhos de percepção a respeito do que é – e pode ser – o Brasil.
Esperamos que a tão desejada “internacionalização” da literatura brasileira possa ser entendida de forma dupla. Como apresentação e divulgação de uma literatura embebida em uma história particular e, ao mesmo tempo, como algo a ser acrescentado a um fundo comum de objetos imateriais, compartilhável por toda a humanidade. Para citar alguns exemplos deste magnífico país, a Suécia: o escritor August Strindberg, o cineasta Ingmar Bergman, o pintor Ragnar Sandberg e a mezzo-soprano Anne Sofie von Otter, além de inequivocamente suecos, são partes constitutivas do fundo comum ao qual aludi.
Para o Brasil, receber a honoraria oferecida pela Feira de Gotemburgo e para ela trazer alguns de seus melhores profissionais da imaginação dá-nos a sensação de poder usufruir de um dos modos mais potentes do sentimento do mundo.
Essa talvez seja a principal razão para expressar nossa gratidão ao convite que nos foi formulado.
Gotemburgo, 25/9/2014
Renato Lessa
Presidente da Biblioteca Nacional
Em representação da Exma. Sra. Ministra da Cultura do Brasil, Marta Suplicy

Nenhum comentário:

Postar um comentário