terça-feira, 14 de outubro de 2014

  
Fascismo e homofobia
Renato Lessa
Acostumamo-nos à ideia de que o fascismo é um regime político e um dos modos possíveis de exercício do poder. A expressão ‘Itália fascista’ nos traz à mente, antes de tudo, a imagem de um período histórico, felizmente encerrado ao fim da Segunda Guerra Mundial. Nada de errado com a associação entre fascismo e exercício do poder. No entanto, há na perspectiva fascista muito mais do que isso.

O fascismo é, sobretudo, uma visão de mundo. A circunstância de que tal visão tenha dado passagem a um regime político, em um período específico, não elimina o fato de que um caldo de cultura fascista pode sobreviver e proliferar na ausência de aspectos inerentes ao experimento político que o materializou.

Um dos núcleos duros da visão de mundo fascista é a valorização da violência na política e a preferência por métodos de ação direta. A palavra ‘ímpeto’ bem pode simbolizar a coisa. Ela foi fundamental para definir também uma forma estética, fundada no amor pela guerra, no culto à velocidade e na desconfiança fundamental com relação à cultura de mediações que marca o processo civilizador. Em outros termos, no lugar das mediações e do princípio do estado de direito – características culturais centrais do processo civilizador –, os fascistas propõem uma cultura política instantânea, baseada no máximo atrito das energias políticas e sociais e, sem surpresa, no uso da força que disto decorre. O fascismo, hoje, é, mais do que uma ideologia, uma linguagem, uma forma de vida.

Um aspecto estruturante do fascismo é a eleição de um inimigo, de uma vítima expiatória. Nesse fenômeno, magistralmente estudado pelo cientista social e historiador franco-americano René Girard, alguns seres humanos são tomados como vítimas de um processo de expiação. Quer isso dizer que, por meio de sua eliminação, a comunidade dos eliminadores ganha homogeneidade e pureza. Não há fascismo – ou sua deriva alemã, no nazismo – sem vítimas expiatórias. O destino destas não decorre de nenhuma de suas características intrínsecas, mas tão somente da brutalidade e do ímpeto do processo que as define como inimigas.

Os judeus ocuparam, durante grande parte da história ocidental, o papel predileto de vítimas expiatórias. Para além dos registros históricos, que se leia o magistral O faz tudo, do escritor norte-americano Bernard Malamud (1914-1986), a respeito de um violento surto de antissemitismo na Rússia tzarista.

No Brasil, sem sombra de dúvida, não vivemos sob o fascismo. A besta, por certo, esteve a nos rondar, mas por aqui não fixou uma tradição política. No entanto, conhecemos processos terríveis de fabricação de vítimas expiatórias. O país, por exemplo, é o segundo colocado em uma escala mundial macabra: a da incidência de linchamentos. Um linchamento é, por excelência, um ritual de expiação, pelo qual uma comunidade se purifica com a eliminação do que julga ser um dejeto.

A homofobia, tão forte e renitente no país, é um dos traços culturais que abrigam um desejo de expiação. O crescimento de bancadas ultraconservadoras e fundamentalistas, nas últimas eleições legislativas no Brasil (14% da Câmara dos Deputados) deixa entrever uma poderosa coalizão de cerca de 70 deputados, devotados à tarefa de desfazer o pacto civilizatório expresso na Carta de 1988. Temas como redução da maioridade penal, veto à união civil homoafetiva e recusa à criminalização da homofobia têm ganhado visibilidade, como bem demonstrou o patético comportamento de um dos candidatos à presidência, digno exemplar do abismo e da cloaca política nacional.

A causa dos direitos dos homossexuais deixou há muito de ser uma ‘pauta local’, ou tema de ‘minorias’. É fundamental defendê-la, tanto pelo respeito devido ao direito de definir orientações sexuais pessoais, quanto pela preservação daquilo que o escritor italiano Primo Levi (1919-1987) definiu como o “esqueleto, a forma básica da civilização”.

(Coluna mensal “Sobrehumanos” da Revista Ciência Hoje, a sair no número de novembro de 2014)


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